A Cia Ká estreou ontem (29) um novo e provocativo título em seu repertório: Noget’s de Sobremesa. A montagem apresenta um apocalipse servido à mesa por Deus, o criador, em um ato arbitrário e inquestionável. Mas seria essa decisão tão irrefutável assim?
Mantendo sua assinatura estética grotesca e provocativa, Caio Frankiu conduz o espetáculo com maestria, entrelaçando a dramaturgia com versículos bíblicos e reflexões sobre a contemporaneidade. O texto sagrado, ao ser relido sob um prisma crítico, oscila entre o divino e o profano, desafiando as certezas do público.
A estrutura dramatúrgica fragmentada, característica marcante da Cia Ká, ganha contornos distintos nesta produção, na qual o foco se desloca do corpo em cena para o texto falado. O resultado é um espetáculo altamente verbal, talvez o mais discursivo já encenado pelo grupo.
A trama nos apresenta Pepeu, um filho que hesita entre Noget’s ou Pudim de Leite (ou outro doce) como sobremesa, enquanto Deus, em um gesto de onipotente desdém, convoca uma votação no “condomínio” chamado Terra para decidir a aniquilação da humanidade. Essa figura divina, despida de misericórdia, é retratada como um ser que se deleita no próprio poder e na manipulação das massas, evocando traços dos tiranos mitológicos.
A cenografia e a iluminação, operadas em tempo real e integradas à narrativa, intensificam o impacto da encenação. A trilha sonora, composta por músicas pop amplamente reconhecíveis, expõe com ironia a alienação e a falta de consciência política que permeiam nossa sociedade.
Num espaço cênico intimista, o público é imerso nesse conselho caótico de divindades e figuras ambíguas, onde se entrelaçam amor materno, disputas de poder e a presença de Lúcifer, que aqui surge como um personagem cuja maldade é posta em questão. Seria ele, de fato, o inimigo?
O figurino se destaca ao construir uma identidade visual potente, influenciada por clássicos distópicos e pelo trabalho de Dominique Lemieux para Alegría (Cirque du Soleil), evidenciando que uma companhia independente de Curitiba pode transcender limites de fronteira, mesmo sem orçamento.
O elenco assume seus papéis com intensidade visceral, provocando no público ora repulsa, ora identificação, ao ponto de nos fazer oscilar entre a aversão a Deus e a empatia por Pepeu ou mesmo Lúcifer. A peça é um jogo de manipulação constante, onde a dúvida é o centro de gravidade.
A interação com o público transcende a encenação física, incorporando redes sociais como espaço de disseminação do poder divino. Lives e votações no Instagram fazem de Deus um influenciador digital (alô Frei Gilson), ditando os rumos da existência em um paralelo inquietante com as estruturas políticas e religiosas do mundo real. A indecisão de Pepeu diante da sobremesa ressoa com a postura apática de quem opta pelo voto em branco, evidenciando que omissão também tem consequências. O fino véu condutor de uma cortina de fumaça é na verdade guiada por Deus para dizer sem escrúpulos que estamos sendo manipulados o tempo todo nesse jogo de poder de quem brinca de Deus, Diabo e Pepeu.
No desfecho, resta-nos apenas um questionamento: em que peça desse tabuleiro estamos? Enquanto deliberamos sobre futilidades, as elites definem novas crises e guerras. O espetáculo, apesar de sua veia cômica e surreal, conduz a uma inquietante constatação: se um meteoro está prestes a cair, quem o lançará?