Foto: Divulgação
Poucos filmes brasileiros têm uma trajetória tão tortuosa e simbólica quanto “Onda Nova”. Dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia em 1983, o longa foi concebido como uma crítica à repressão moral, política e sexual da sociedade brasileira — e acabou ele próprio sufocado pela censura da ditadura militar. Quarenta anos depois, a obra enfim ganha uma nova chance de ser vista pelo grande público, com lançamento previsto para 27 de março de 2025, em versão restaurada e remasterizada em 4K.
A trama acompanha a formação do fictício time Gayvotas Futebol Clube, um grupo de mulheres que decide jogar futebol justamente no ano em que o esporte foi oficialmente permitido para elas no Brasil, após décadas de proibição institucional. Dentro e fora de campo, essas jogadoras enfrentam todo tipo de preconceito — do sexismo ao moralismo — em uma jornada marcada por desejo, afirmação de identidade e resistência. O elenco reúne nomes como Carla Camurati, Cristina Mutarelli, Regina Casé, além de participações especiais de Caetano Veloso, Osmar Santos e jogadores como Casagrande e Wladimir, ligados à Democracia Corintiana.

Produzido no contexto da Boca do Lixo — famosa zona cinematográfica de São Paulo nos anos 1970 e 1980, o filme foi frequentemente rotulado como pornochanchada. Mas essa leitura é apressada: o longa tenta, sim, subverter esse gênero ao tratar o desejo não como fetiche, mas como potência libertadora. O objetivo era claro: criticar o moralismo da época com irreverência e provocação estética. O figurino exagerado, a trilha sonora pop e a estética camp reforçam esse tom.
No entanto, o resultado final é ambíguo. O roteiro, embora ambicioso em sua temática, peca pela superficialidade no desenvolvimento das personagens e de seus conflitos. Os diálogos soam artificiais e forçados, dificultando a conexão do público com a trama. As jogadoras do Gayvotas são retratadas de maneira estereotipada, sem a complexidade necessária para que suas lutas e desafios sejam plenamente compreendidos e sentidos pelo espectador. Isso enfraquece a proposta crítica do filme, que parece mais prometer do que entregar.

A censura, ainda assim, foi implacável. Após exibição na 7ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1983, o filme foi sumariamente proibido. A justificativa oficial nunca foi clara, mas o motivo simbólico é evidente. Como declarou o diretor Ícaro Martins: “É um filme onde o desejo assume o protagonismo, define e conduz as personagens e a narrativa. Mesmo sem abordar política diretamente, ao colocar o desejo como afirmação de identidade e de vida, ‘Onda Nova’ se tornou a própria negação da ditadura vigente na época. Por isso, sua censura foi total.”
A redescoberta de “Onda Nova”, décadas depois, foi liderada por Julia Duarte, a produtora Aclara Produções Artísticas e a família de José Antonio Garcia, com apoio da Cinemateca Brasileira, Zumbi Post e JLS Facilidades Sonoras. A nova identidade visual — pôster e trailer — foi assinada por Helena Garcia, filha do diretor.
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Tecnicamente, o filme apresenta limitações visíveis. A sonorização é irregular, o ritmo vacila, e a direção de atores, por vezes, se perde entre o exagero e a inexpressividade. Ainda assim, a crueza dos recursos e a ousadia do tema contribuem para um tipo de charme histórico que não pode ser ignorado. É um retrato imperfeito, mas sincero, de um Brasil em transição — e de um cinema que buscava novas formas de existir.
A redescoberta deste filme permite uma reflexão sobre a evolução do cinema brasileiro e a forma como temas sensíveis foram e continuam sendo abordados. Embora a obra tenha um valor histórico inegável, sua qualidade artística e técnica não se sustentam diante de uma análise criteriosa. A tentativa de subverter o gênero da pornochanchada e criticar o moralismo sexista da época é evidente, mas a execução falha em entregar uma obra coesa e impactante.
Ainda assim, “Onda Nova” retorna com um papel relevante: provocar. Sua reestreia traz à tona discussões sobre censura, liberdade artística, repressão institucional e memória cultural. Para quem se interessa pela história do cinema nacional, pelos direitos das mulheres ou pelos caminhos tortuosos da arte em tempos autoritários, trata-se de uma oportunidade rara. O longa-metragem pode não ser uma obra-prima, mas é um documento — e, como tal, merece ser visto, discutido e lembrado.