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É difícil sair sem se sentir tocado pela grandiosidade que envolve a obra “Milton Bituca Nascimento”. A emoção já começa pela voz que conduz o documentário, dirigido por Flavia Moraes — um som que reverbera de dentro pra fora com a mesma delicadeza e força da música de Bituca. E não era de se esperar menos ao ouvir Fernanda Montenegro. Ela nos guia como se nos pegasse pela mão, sussurrando em nossos ouvidos a história de um dos maiores artistas do Brasil. E talvez seja isso mesmo: se existe um caminho para entender a alma brasileira, como diz a própria Fernanda no filme, “com certeza ele passa pela estação Milton Nascimento.”
O longa acompanha a turnê de despedida do artista, “A Última Sessão de Música”, e se transforma num tributo em vida. Mais que uma simples narrativa biográfica, o filme é um mergulho sensível em sua trajetória pessoal, sua influência e legado. Das montanhas de Minas Gerais aos palcos do mundo, Bituca, como é carinhosamente chamado Milton Nascimento, se impôs como uma das vozes mais singulares e poderosas da música universal — e isso sem jamais perder a ternura.

Nascido no Rio de Janeiro em 1942 e adotado ainda pequeno por uma família branca em Três Pontas, Minas Gerais, Milton enfrentou, desde cedo, o peso do racismo e da exclusão. Essa vivência, que poderia ter silenciado muitos, alimentou sua poesia e sua música. Como bem lembrou o próprio Milton em entrevista ao “Fantástico” (TV Globo, nov/2022): “Tudo que eu vivi virou música. E a música me salvou.”
A importância de Bituca na música brasileira é imensurável. Seu timbre agudo e melancólico — que muitos diziam “não pertencer a este mundo” — reinventou as fronteiras entre o regional e o universal, o erudito e o popular, o ancestral e o moderno. Foi um dos fundadores do Clube da Esquina, movimento que, ao lado de Lô Borges, Beto Guedes e outros mineiros geniais, criou um som inédito no Brasil dos anos 1970, misturando jazz, MPB, rock progressivo, música andina e mineiridade pura.

Como bem pontua Caetano Veloso no documentário, “Milton é um monumento. Ele nos ensinou que é possível fazer música brasileira sem clichê, sem caricatura.” Já Gilberto Gil completa: “Milton é o mistério, é o abismo da beleza. A gente ouve e chora.”
Mas o impacto de Milton não se limitou ao Brasil. Bituca conquistou o mundo sem fazer concessões. Em 1975, o disco “Native Dancer”, gravado com o saxofonista norte-americano Wayne Shorter, virou referência no jazz internacional. Stevie Wonder não só se tornou amigo como tocou gaita no disco “Sentinela”. Quincy Jones e Herbie Hancock o reverenciaram como um dos grandes músicos vivos. E seu nome foi citado por nomes como Esperanza Spalding e Dianne Reeves como influência direta em suas formações.
O documentário não apenas reconhece essa projeção mundial, mas também a enraíza. As cenas de sua turnê de despedida, sobretudo no show do Mineirão, em Belo Horizonte, são de uma força comovente. É ali, diante de uma multidão emocionada, que Bituca se despede dos palcos como quem planta uma semente: com silêncio e generosidade.
A participação de artistas como Maria Gadú, Criolo, Liniker, Seu Jorge, entre outros, mostra que a obra de Milton não apenas atravessou gerações, mas segue pulsando como farol para quem cria e canta neste país. Como lembrou Criolo em uma entrevista para a “Rolling Stone Brasil” (nov/2022): “O Milton ensinou a gente a sonhar com dignidade. O Bituca é Brasil profundo.”

A fotografia do filme, a montagem e a direção sonora são precisas e respeitosas. Flávia Moraes nos oferece um olhar terno e potente sobre Bituca, sem exageros, sem forçar lágrimas. A emoção vem naturalmente, o orgulho de ser da mesma nacionalidade deste gênio musical também.
Além do filme, destaca-se também o projeto “ReNascimento”, um álbum-tributo com novas versões de clássicos de Milton interpretados por jovens artistas, mostrando que sua obra segue viva e necessária.
“Milton Bituca Nascimento” é mais do que um documentário musical. É um rito de passagem. Uma celebração de alguém que se despede dos palcos, mas jamais das canções. Como pergunta Fernanda Montenegro no encerramento do filme: “O que é uma despedida diante da imortalidade?” Bituca é isso — presença eterna.