Espetáculo ‘Júpiter e a Gaivota’ (Reprodução: Humberto Araujo)
Críticos, por ofício, tendem a se afastar do centro do discurso. A crítica, afinal, não deve ser sobre quem escreve, mas sobre a obra observada. No entanto, há ocasiões em que separar o olhar técnico da experiência pessoal se torna um exercício impossível — e, talvez, até desonesto. A mais recente edição do Festival de Curitiba ofereceu uma dessas ocasiões.
Em 2024, durante uma coletiva de imprensa do próprio festival, um diretor e dramaturgo afirmou: “Se as pessoas passam horas maratonando séries na Netflix, por que não podem assistir a um espetáculo com a mesma duração?” À primeira vista, a provocação soa pertinente — e até sedutora. Mas, chegando ao fim de mais uma edição do festival, a prática revela a falácia contida nesse pensamento.
Teatro não é streaming
A reflexão aqui proposta não é contra a complexidade dramatúrgica, tampouco um apelo pelo entretenimento fácil e fragmentado. A reflexão diz respeito ao tempo — mais precisamente, à duração excessiva de certas montagens e à rigidez em ignorar o contexto social, físico e mental de seu público.
Nos últimos anos, tornou-se recorrente no Festival de Curitiba a presença de espetáculos com mais de duas horas de duração. Neste ano, “Júpiter e a Gaivota”, da Cia Setor de Áreas Isoladas, ultrapassou a marca das 3h30, com um intervalo de 15 minutos. Um espetáculo com tal extensão exige não apenas resistência, mas uma disposição quase sacerdotal por parte do espectador. Não por acaso, relatos de que mais de 70% da plateia abandonou a sessão antes do final não surpreendem. São, antes, sintomas de uma crise silenciosa, mas já bastante visível: a desconexão entre o tempo do artista e o tempo da vida real.
E não se trata de mero achismo. Pesquisas de diferentes áreas confirmam aquilo que o público já manifesta com seus gestos. Em 1976, McLeish, da Cambridge Institute of Education, demonstrou que o pico de concentração de estudantes em ambientes de aula dura, em média, 10 a 15 minutos. Paul King, ao estudar as TED Talks em 2014, identificou que após 7 minutos o nível de atenção já começava a cair vertiginosamente — e após 10 minutos, metade da audiência estava dispersa.
É evidente que um espetáculo teatral exige um tempo de desenvolvimento maior do que uma palestra de sete minutos. Contudo, não há mais espaço — ao menos no modelo de vida contemporâneo — para montagens que ultrapassem confortavelmente as duas horas, sem perder o vínculo com quem assiste. A não ser, claro, que se conte com recursos cênicos grandiosos, como orquestras, efeitos especiais ou interatividade constante. A Broadway, com seus orçamentos milionários e estrutura técnica, talvez ainda se dê esse luxo. Mas mesmo lá, o tempo é ritmado pelo impacto visual. E isso não é teatro puro — é teatro com aparato.
É nesse ponto que a comparação com o streaming se desfaz por completo. As maratonas de série ocorrem no conforto do lar, onde o espectador pode pausar, comer, descansar ou retomar a narrativa quando quiser. No teatro, há apenas o presente. E o presente, quando dilatado demais, fere a atenção e, com ela, o prazer.
Há ainda a dimensão prática: espetáculos que se iniciam às 20h30 e encerram por volta da meia-noite são, por definição, excludentes. Curitiba, ao contrário de outras metrópoles, não dispõe de transporte público após certo horário. Muitos espectadores não podem custear táxis, estacionamentos noturnos ou correr riscos em ruas desertas. Exigir essa logística em nome da “experiência” teatral é esquecer que o teatro não é um rito sagrado acima da vida — ele é parte dela.
A resistência dos grupos artísticos e da curadoria em adaptar-se ao tempo real é, na prática, uma forma de elitização. Ainda que não intencional. E, paradoxalmente, enfraquece o próprio teatro: torna-o menos acessível, menos atrativo e mais distante. Porque a arte da presença exige não só corpos na plateia, mas corações e mentes atentas.
É preciso compreender que adaptar o tempo da cena ao tempo do público não é ceder à lógica do consumo rápido. É, na verdade, um gesto de escuta. E é disso que o teatro sempre foi feito: escuta, presença e conexão.
Fazer um espetáculo conciso, eficaz e envolvente, ainda que em menos tempo, não é reduzir a arte. É respeitar o tempo do outro. Um Hamlet encenado na íntegra para uma sala esvaziada e dispersa vale menos que um monólogo enxuto capaz de tocar quem assiste. Não se trata de quantidade, mas de qualidade da presença. A ideia aqui não é questionar a qualidade técnica – até porque não tenho o direito sob isso, não assisti a ‘Júpiter e a Gaivota’ – , mas propor uma reflexão, pois não assisti justamente pela duração.
O teatro é vivo, sim. Mas ele morre um pouco toda vez que ignora o tempo de quem está na plateia. E é exatamente nesse ponto que o artista citado no início falhou e que muitos outros também falham. Porque streaming e teatro não se medem pelos mesmos critérios. A arte da cena exige esforço, claro, mas exige também bom senso. Porque nenhum ideal artístico se sustenta diante de uma sala vazia ou de um público que rola o feed no meio do ato final.