A Cia Ká de Teatro ergueu um Olimpo cênico em Curitiba, evocando a grandiosidade dos deuses do Teatro com uma potência singular. Pelo segundo ano consecutivo, agora no Espaço Excêntrico Mauro Zanatta foi palco de uma verdadeira ode à arte, reunindo cinco espetáculos – Eco, Pilar de Fogo, Kraken, Noget’s de Sobremesa e Pandora –, além de uma imersão artística no Espaço Ká de Teatro.
Nos bastidores, o Folhetim acompanhou o pulso vibrante dessa companhia, testemunhando a entrega visceral de artistas que fazem do teatro um ofício de devoção. Há na Cia Ká uma rara simbiose entre elenco e criação, onde o comprometimento com a arte transcende limitações e sacrifícios. O palco é testemunha dessa fusão entre paixão e técnica, revelando uma engrenagem cênica que pulsa em uníssono.
A mostra reuniu espetáculos de profunda carga crítica, conduzindo o espectador por um percurso de inquietações. Eco expõe a destruição emocional que um amor irresponsável pode causar. Pilar de Fogo projeta um futuro distópico onde livros tornam-se cinzas sob um conservadorismo ignorante. Kraken mergulha nas águas profundas do capitalismo e suas amarras invisíveis. Noget’s de Sobremesa subverte o conceito de redenção ao questionar a lógica arbitrária do divino. E, por fim, Pandora escancara os medos humanos em corpos marcados pela opressão.
Apesar da densidade dos temas – conservadorismo, fanatismo religioso, misoginia, perversidade –, as críticas emergem de forma orgânica, sem artifícios didáticos. O trabalho da Cia Ká é minucioso, destilado em cada cena, e evidencia um rigor cênico inquestionável.
Mesmo à margem do maior festival de teatro e sem financiamento robusto, a companhia reafirma sua existência e resistência. Num cenário em que a cena curitibana frequentemente exalta produções estrangeiras enquanto negligencia suas próprias jóias, a Cia Ká inscreve-se como um ato de insurgência.
Mas a essência dessa potência cênica está em seu elenco, composto por artistas que não apenas ocupam o palco, mas o reivindicam como extensão de sua existência. Cada um deles traz à cena um elemento único, compondo um mosaico de força, presença e entrega.
Caio Frankiu, além de dramaturgo e diretor exímio, fragmenta-se em cena de forma hipnótica. Sua atuação é um jogo entre intensidade e controle, um ator que domina o palco sem precisar reivindicá-lo. Seu trabalho não se esconde atrás de sua assinatura como autor e diretor; ao contrário, ele se despe de qualquer referência anterior para se recriar a cada novo personagem. É um dos raros casos onde a própria presença torna-se narrativa.
Beatriz Marçal, produtora, iluminadora e atriz, carrega consigo um magnetismo inegável. Sua presença em cena é de tal forma imponente que tudo ao seu redor se reduz, tornando-a o epicentro da ação. Seus personagens não apenas preenchem o espaço, mas o redefinem. Há uma batalha constante entre sua força e os limites da cena, uma batalha que ela vence sem esforço aparente.
Brielle é uma força da natureza em cena. Seu domínio corporal transforma qualquer gesto em um acontecimento, qualquer silêncio em uma melodia visual. Seu trabalho ultrapassa a atuação e se converte em performance, uma entidade cênica que flui entre ritmo, emoção e expressão. É onipresente e onipotente no palco, uma explosão de energia que dá vida a qualquer dramaturgia.
Thayna Bressan traz uma força cênica admirável, uma presença que ressoa mesmo em instantes de silêncio. Sua interpretação é um convite ao olhar atento: há nuances e camadas que se revelam com sutileza, mas que, quando percebidas, são arrebatadoras.
Mattias, ator, jornalista e escritor, vem para a cena com uma força ancestral que domina cada pedaço da caixa preta. Sua atuação tem algo de ritualístico, como se cada movimento fosse uma evocação. Ele não pede licença para ocupar o espaço; ele o toma, e sua presença é tão avassaladora que se torna impossível desviar o olhar.
Luiz Nogueira opta pelo caminho do minimalismo, provando que força não está apenas na grandiosidade, mas também no detalhe. Sua atuação sutil, quase etérea, carrega uma dramaticidade latente que se manifesta nos momentos mais inesperados. Seu gesto contido, sua presença calculada, tudo se converte em um potencial dramático intenso, mostrando que a delicadeza pode ser tão impactante quanto o furor.
Bruno Oni é a metamorfose encarnada. Sua atuação transcende limites e gêneros, fundindo-se ao que a cena exige. Ele carrega consigo uma presença dionisíaca, instintiva, avassaladora. É impossível defini-lo, pois a cada espetáculo ele se refaz, como se cada papel fosse uma nova identidade assumida sem reservas.
Saymon Wendell encontra na delicadeza a sua força. Em meio a tantas energias intensas, ele é o equilíbrio, a sutileza necessária para tornar cada cena uma composição harmoniosa. Seu trabalho nos lembra que atuar não é apenas falar e se mover, mas habitar o espaço com verdade.
Ligia Petri, com seu carisma e versatilidade, alterna entre o espetacular e o preciso. Seu trabalho dispensa exageros, pois sua presença já é suficiente para tornar qualquer cena inesquecível. Dani Rocha é a revolução em cena. Sua energia é greco-romana, quase mitológica, evocando uma teatralidade que nos remete às tragédias clássicas. Sua presença não apenas ocupa o palco, mas o transforma.
Gabbiel se impõe com uma atuação exuberante. Ele não apenas interpreta personagens, ele os materializa em carne e osso, trazendo uma densidade shakespeariana a cada performance. Anna Wantuch domina o corpo como instrumento cênico. Seu trabalho é físico, visceral, e cada movimento seu carrega um significado que transcende a palavra.
Yohann transporta a cena a um equilíbrio raro entre o clássico e o contemporâneo. Há nele uma sofisticação interpretativa que remete ao teatro do século XIX, mas com uma pulsação moderna que o torna atemporal. Lua Busnello traz em sua interpretação um grito silencioso. Seu corpo é um manifesto, sua presença é um pedido de reparação histórica.
Gabi Ramos, como um tsunami, transborda potência. Sua voz e sua presença se impõem de tal forma que é impossível não sentir o impacto. Danilo Gomes, com sua dança hipnótica, conduz o público ao transe. Seu trabalho não se limita à movimentação; ele cria atmosferas, transporta o espectador para dimensões outras.
Mila Leão é pura potência. Atriz, cantora, percussionista, sua arte é a fusão de todas as linguagens. É como se sua presença fosse capaz de reescrever a cena em tempo real, transformando qualquer palco em seu templo.
Potencializando tantas dramatizações está Ilke Rocha, transformando o palco no centro desse sistema solar com sua grandiosidade técnica na iluminação de cada espetáculo, entregando o que cada ritual exige para que seja tão forte quanto qualquer supernova.
No centro desse universo pulsante, Kelvin Millarch conduz a companhia como um verdadeiro arquiteto do sensível. Sua direção e dramaturgia refletem uma compreensão visceral da cena, moldando um grupo que desafia os limites do fazer teatral. Sua direção não impõe, mas potencializa. Dirigir uma peça já é um feito; conduzir uma companhia com cinco espetáculos simultâneos é um ato de titãs.
Num festival onde o teatro de dentro é varrido para debaixo do tapete, é imperativo conhecer o trabalho de uma companhia que não apenas encena, mas ressignifica a arte como pulsação vital. Para sorver a essência do teatro em sua forma mais pura, é preciso abandonar o olhar domesticado e permitir-se embriagar pela taça dionisíaca servida pela Cia Ká.
Dionísio se faz presente em cada blackout, cada grito e cada aplauso. A trajetória dessa companhia é de tal magnitude que não há experiência acadêmica que prepare alguém para compreender sua profundidade. Agora, resta apenas a lacuna deixada pelo fim desse ciclo teatral intoxicante. Para aqueles que desejam sequer arranhar a superfície dessa força cênica, o desafio está lançado: tentar alcançar a poeira que essa biga grega levanta em seu rastro.