Quando o Jazz encontrou a política e mudou a história

Divulgação/Pandora Filmes

Se a história da humanidade fosse uma partitura, momentos de tensão e conflito seriam os acordes dissonantes que marcam transições cruciais. “Trilha Sonora para um Golpe de Estado”, documentário do cineasta belga Johan Grimonprez (Shadow World, Double Take), expõe uma dessas transições ao revelar a conexão entre a música e os bastidores de um dos eventos políticos mais controversos do século XX: o assassinato de Patrice Lumumba, primeiro-ministro democraticamente eleito da República Democrática do Congo, em 1961. Com um ritmo que ecoa o improviso do jazz e uma montagem frenética, o filme transforma uma narrativa histórica complexa em uma experiência audiovisual impactante.

“Eu quis explorar a história sombria do meu próprio país, a Bélgica, e seu passado colonial no Congo. Cresci na Bélgica e nunca aprendi sobre isso na escola. Por exemplo, o assassinato de Patrice Lumumba é um evento que ainda hoje é distorcido, com ele sendo frequentemente rotulado como comunista. Achei crucial abordar esse momento histórico para enfrentar o trauma coletivo e as relações desiguais entre o Norte Global e o Sul Global. Se quisermos avançar como sociedade, não podemos negar essas conexões.” – relatou Grimonprez em entrevista ao Estadão.

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Combinando imagens de arquivo, entrevistas e performances musicais, o documentário reconstitui as manobras geopolíticas que culminaram no golpe que derrubou Lumumba. O filme demonstra como a música, em especial o jazz, esteve no centro desse cenário, funcionando tanto como ferramenta de protesto quanto de manipulação política. O roteiro, assinado por Grimonprez em parceria com Ila Firouzabadi e Pirouz Nemati, estabelece conexões entre as movimentações imperialistas dos EUA e a influência cultural exercida por grandes músicos como Louis Armstrong, Abbey Lincoln e Max Roach.

Diferentemente dos documentários tradicionais, que seguem uma estrutura linear e factual, a obra se vale de uma montagem quase caleidoscópica, na qual cenas históricas, discursos políticos e apresentações musicais se sobrepõem. Esse recurso, conduzido pela edição ágil de Rik Chaubet, reflete a natureza improvisada do jazz e reforça a complexidade da conjuntura política da época.

“Nesse filme, a música desempenha um papel central, quase como protagonista. Descobri que a música não era apenas uma presença, mas também um agente histórico e político.”

A presença de figuras como Louis Armstrong no documentário não é acidental. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos utilizaram o jazz como uma espécie de “diplomacia cultural”, enviando artistas negros para turnês internacionais como uma tentativa de suavizar sua imagem em meio às crescentes denúncias de racismo dentro do próprio país. No entanto, a narrativa de Grimonprez expõe como essa mesma música, que deveria ser uma expressão de liberdade, era frequentemente utilizada como distração das atrocidades cometidas em nome do imperialismo.

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O filme apresenta, por exemplo, a visita de Armstrong ao Congo, promovida pelos EUA em meio à crise política no país. Enquanto a população congolesa enfrentava a turbulência da transição para a independência e a iminente queda de Lumumba, o trompetista era exaltado como um “embaixador da paz”. A ironia desse contraste é escancarada pelo documentário, que evidencia como o entretenimento pode servir para mascarar estratégias de dominação.

Por outro lado, “Trilha Sonora para um Golpe de Estado” também dá voz à resistência, destacando artistas que utilizaram a música para protestar contra a violência e a opressão. Abbey Lincoln e Max Roach, por exemplo, lançaram músicas denunciando a brutalidade do colonialismo, tornando-se figuras centrais no movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e na luta anticolonial na África.

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A execução de Patrice Lumumba marcou não apenas a trajetória do Congo, mas também redefiniu o papel das grandes potências na África. Ao trazer à tona documentos sigilosos e imagens antes pouco exploradas, o documentário revela o envolvimento direto de países como Bélgica e Estados Unidos no golpe de Estado, questionando o discurso oficial que sempre tratou a morte de Lumumba como resultado de instabilidades internas.

A abordagem de Grimonprez não se limita a revisitar o passado, mas também convida o espectador a refletir sobre os ecos desse episódio no presente. Em tempos de fake news, manipulação midiática e persistência do racismo estrutural, o filme sugere que a interseção entre cultura e política continua sendo um território de disputa fundamental.

“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” não é um documentário de fácil digestão. Sua narrativa fragmentada e a profusão de informações exigem atenção total do espectador. No entanto, essa escolha estética é proposital: assim como no jazz, a obra exige envolvimento ativo, pedindo ao público que conecte os pontos e compreenda a intrincada relação entre arte e poder.

Indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2025, o filme tem sido amplamente elogiado por críticos e historiadores, que destacam sua capacidade de traduzir um evento político complexo em uma linguagem acessível e visualmente cativante. Se a história é, de fato, uma composição em constante construção, “Trilha Sonora para um Golpe de Estado” se estabelece como uma de suas mais inquietantes melodias.

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