O Retrato de Norah: o silêncio como resistência

Tawfik Alzaidi estreia como diretor de longa-metragem com “O Retrato de Norah”, um filme que se passa na Arábia Saudita dos anos 1990 e que propõe uma reflexão profunda sobre o poder da arte em uma sociedade que, à época, tentava apagá-la. Ao acompanhar o encontro entre um professor e uma jovem que deseja ser retratada, o cineasta constrói uma narrativa minimalista e simbólica sobre o desejo de expressão, o confronto entre tradição e modernidade, e a urgência da liberdade criativa.

O longa se destacou ao ser o primeiro filme saudita a integrar a seleção oficial do Festival de Cannes, na mostra Un Certain Regard, um feito histórico para um país que até 2018 não possuía salas de cinema ativas. Essa conquista não é apenas um marco institucional, mas um gesto político e cultural, uma declaração de que a arte saudita existe, resiste e quer ser vista.

A história de “O Retrato de Norah” é simples: em uma vila isolada, Norah, interpretada pela notável Maria Bahrawi, órfã e reprimida pelos costumes locais, conhece Nader, Yaqoub Alfarhan, um professor recém-chegado que desperta nela o desejo de ser retratada. O gesto de pedir um retrato, em um contexto em que a representação feminina é considerada tabu, ganha um peso subversivo.

O diretor Shaun Harley Lee transforma o deserto de Al Ula em uma personagem silenciosa: as dunas e as casas de barro não apenas delimitam o espaço físico, mas refletem o confinamento psicológico dos habitantes. A fotografia, de tons quentes e composição milimétrica, remete a um western contemplativo, um território de silêncio e resistência.

Foto Pandora Filmes/Divulgação

Em entrevista à Arab News, Tawfik Alzaidi revelou que a gênese do projeto remonta à própria infância. “Desde os nove anos eu tinha paixão por arte. Lia revistas, via fotos e ouvia fitas de música, mas, na Arábia Saudita dos anos 90, a arte em todas as suas formas era invisível. Muitos artistas desistiram porque não havia espaço para eles.”

Essa memória pessoal é o núcleo emocional de Norah. O filme é, ao mesmo tempo, uma lembrança e uma reparação. Ao revisitar esse tempo em que a arte era reprimida, Alzaidi constrói um espelho simbólico, a jovem Norah representa todos os que queriam criar, mas foram silenciados. “Acredito que sempre há criatividade dentro das pessoas, e ela precisa encontrar uma forma de sair. A criatividade é uma ferramenta de comunicação entre as pessoas, e eu quis mostrar isso neste filme”, relatou Alzaidi.

O desejo de Norah de ser retratada, é, portanto, uma metáfora para o próprio ato de fazer cinema em um país onde a imagem, por muito tempo, foi vigiada. Alzaidi filma o rosto da jovem como quem desafia a invisibilidade imposta pela tradição.

Produzir Norah não foi um processo simples. O roteiro começou a ser escrito em 2015, e levou quase oito anos para ser filmado. Alzaidi revelou que chegou a recusar parcerias que exigiam alterações em sua visão autoral. “Quando busquei financiamento, uma grande produtora me pediu para mudar o roteiro e até o final do filme. Queriam controlar a história. Se eu tivesse cedido, Norah não teria chegado a Cannes.”

Essa recusa em ceder ao controle externo espelha o próprio tema do filme: uma luta pela autonomia da voz. Assim como Norah quer decidir como será vista, Alzaidi quer decidir como seu país será mostrado. O filme, então, transcende sua narrativa e se torna um ato de afirmação política e artística.

O Retrato de Norah foi filmado em Al Ula, uma região desértica de beleza ancestral. O diretor escolheu o local não apenas pela estética, mas pelo simbolismo: um espaço remoto que ecoa tanto isolamento quanto resistência. “Com a paisagem inspiradora e criativa de Al Ula como cenário, eu quis trazer à vida uma história única.”

O vilarejo, isolado e suspenso no tempo, torna-se uma prisão a céu aberto. A aridez da paisagem e a escassez de cores expressam o silêncio forçado da sociedade retratada. Cada plano parece buscar o respiro que falta às personagens.

Foto Pandora Filmes/Divulgação

Maria Bahrawi, descoberta apenas duas semanas antes das filmagens, carrega o filme com uma presença quase etérea. Sua atuação é feita de olhares e pausas uma performance contida, mas potente. O diretor explicou a escolha, “Foi muito difícil encontrar a atriz certa, até conhecermos Maria Bahrawi. Ela entendia o que significava querer algo maior e não saber se conseguiria.”

Ao lado dela, Yaqoub Alfarhan atua como ponte entre o velho e o novo: seu professor é o agente da mudança, o homem que desperta a consciência, mas também o que reconhece os limites impostos por uma sociedade patriarcal.

A câmera de Alzaidi raramente busca o choque. Ela observa. O ritmo lento, quase ritualístico, convida o espectador a compartilhar o tempo do silêncio, o tempo da espera, da repressão e da descoberta. Essa escolha formal reflete o que o próprio diretor entende como essência do cinema. “Um bom filme precisa entender a alma humana e o poder da história. Eu aprendo tanto assistindo a um grande filme quanto lendo um livro de Murakami.”

Essa visão poética se traduz numa estética contemplativa, que evita o melodrama e aposta na sugestão. Por isso, alguns críticos ocidentais, como no Le Monde, consideraram Norah “mais simbólico do que explosivo”, um filme que “prefere a contenção à denúncia”. Ainda assim, a força do gesto está justamente no silêncio: em um país que historicamente puniu a expressão artística, filmar o desejo de pintar já é um ato revolucionário.

Alzaidi não pretende fazer um filme panfletário. Ele mesmo afirma, “Este não é um filme com uma única mensagem, a arte é subjetiva. Mas, quando as novas gerações assistirem a Norah, quero que lembrem de uma coisa: acreditem em si mesmas. Se vocês têm uma voz, nunca parem de lutar por ela.”

Foto Pandora Filmes/Divulgação

A frase sintetiza o espírito de O Retrato de Norah: não se trata apenas de libertar uma personagem, mas de libertar um olhar, o de quem filma, o de quem é filmado, o de quem assiste.

Ao mesmo tempo, o filme dialoga com o momento histórico da Arábia Saudita, que vive uma transição entre conservadorismo e modernização cultural. Alzaidi reconhece o peso desse contexto, “A arte foi silenciada por 35 anos em meu país. Agora, temos a chance de recomeçar”.

O Retrato de Norah torna-se, assim, um símbolo dessa reabertura: o cinema saudita se olhando pela primeira vez, tentando entender o próprio rosto.

Com “O Retrato de Norah”, Tawfik Alzaidi transforma o gesto de um retrato em uma alegoria poderosa sobre ver e ser visto. O filme é lento, minimalista e profundamente visual, sustentado por uma fotografia arrebatadora e atuações silenciosas que dizem mais do que palavras. 

Ao se recusar a gritar, Alzaidi faz algo mais corajoso: sussurra. E, nesse sussurro, ecoa a voz de uma geração que aprendeu a criar mesmo quando não podia. “Quando as pessoas assistirem a este filme, quero que sintam o que eu sentia aos nove anos, quando sonhava com arte sem poder fazê-la. Que percebam que a imaginação é, antes de tudo, uma forma de liberdade”.

Entre o deserto e o retrato, entre o silêncio e a cor, Norah é mais do que um filme, é um renascimento.

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