“Querida Serpente” é um convite provocador a despir-se dos tabus

Por Gabi Coutinho

Após uma estreia de sucesso no Festival de Curitiba, a peça “Querida Serpente”, da Alameda Teatral, retornou para uma curtíssima — e imperdível — temporada no Teatro Enio Carvalho, de 08 a 11 de maio. Inspirada no livro Histórias Íntimas, de Mary Del Priore, a montagem mergulha fundo nas contradições dos desejos humanos, explorando corpo, erotismo e intimidade em uma crítica de humor ácido à hipocrisia.

Confesso que a peça despertou minha curiosidade mas eu mesma, assumidamente um pouco careta, fui assistir com receio do desconforto pela abordagem que sabia que presenciaria. E definitivamente, encontrei ali ainda mais nudez e provocação explícita do que imaginava – entretanto, de maneira extremamente envolvente e positiva.
O desconforto me veio essencialmente em momentos de choque pela temática muito bem trabalhada, principalmente quando me identifiquei na opressão pela objetificação do corpo e a busca obsessiva por padrões no feminino.

“Querida Serpente” não força a barra. Com direção assinada por Cristóvão de Oliveira e cinco artistas em cena, todos também investigadores da própria criação, o espetáculo se constrói numa atmosfera íntima, envolvente e surpreendentemente acolhedora. Já na entrada, os convidados são recepcionados para um brinde de espumante e o elenco estabelece uma conversa para sentir o termômetro e a abertura do público da noite. Na sequência, dentro do teatro, o formato cênico é um show à parte: o público se senta ao redor de uma grande mesa, e todas as cenas se desenrolam ali, no centro, como um banquete de provocações e reflexões.
É impossível não se sentir parte do que está sendo dito e vivenciado naquele espaço.

Apesar de cenas fortes e momentos de exposição explícita, tudo se sustenta em um jogo cênico potente, corajoso e, acima de tudo, muito bem dirigido. De tudo o que tenho visto de corpos despidos e exposição escrachada de sexualidade nos últimos tempos, foi sem dúvidas uma das mais bem fundamentadas e “naturais”.

Tornou-se visível que uma moral envernizada nos afasta do que somos de verdade, e em meio à potência e extravagância nos colocamos em um lugar de vulnerabilidade, desejo, repressão, prazer, e tudo o que pulsa entre esses extremos. Consegue ser sensível, engraçado, envolvente, além de, sem sombra de dúvidas, necessário.

Já encantada e de mente aberta com tudo o que acabara de ver em cena, me conectei ainda mais com a obra no bate-papo que tivemos após a apresentação. A equipe contou sobre a construção e comentou que, além das frutas e do formato que remetiam à refeição, a estrutura também seguiu esse pensamento: da sutileza de um aperitivo até a intensidade do prato principal, passando pela sobremesa e chegando ao cafezinho. Reforçou o que eu senti ter assistido: cenas amarradas e com propósito, em que nada estava ali simplesmente por estar, só para causar impacto.

Fico feliz em ter decidido abrir a mente e me deixar surpreender. Saí do teatro tocada, provocada e com a certeza de que os tabus muitas vezes nos colocam em caixas sem que a gente possa perceber. Me senti liberta, e animada para levar esse convite a mais pessoas, que assim como eu precisam da arte para se permitir.

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