Precisamos falar sobre deriva

Créditos de Carol Castanho

Precisamos falar sobre Deriva, espetáculo da Súbita Companhia que esteve em cartaz de 20 de fevereiro a 02 de março, no Teatro José Maria, em Curitiba. Com um trabalho de corpo impecável que define grande parte das produções do grupo, a montagem apresenta uma visão pulsante e envolvente do teatro contemporâneo, introduzindo esse universo a públicos diversos. E é justamente nesse equilíbrio — entre uma pesquisa cênica sofisticada e uma linguagem que acolhe — que a peça nos conquista.

Deriva ganha o coração de quem já faz do teatro sua casa: artistas, espectadores habituais, aqueles que sabem o que estão prestes a ver. Mas sua grande força está em fazer do palco um mapa vivo da cidade, atraindo novos olhares. Palavras e corpos desenham ruas, memórias e trajetos e, em pequenos detalhes, cada espectador se reconhece. A peça constrói um retrato tão orgânico de Curitiba que não há como não se sentir parte desse universo, percebendo que, em cada gesto, pulsa um pedaço da cidade.

Ao transformar a capital paranaense em condutora da dramaturgia — seja no movimento dos personagens ou nas descrições minuciosas de emoção e espaço —, a peça cria uma conexão instantânea entre cena e público. Os materiais complementares ampliam essa experiência, trazendo num QR Code imagens dos percursos que inspiram o enredo e tornando a narrativa ainda mais palpável e visual. Além disso, a construção cíclica do espetáculo, que resgata falas e cenas ao longo da trama, funciona como um reforço da experiência e mantém a plateia imersa. Afinal, diante de tantos caminhos, desvios e emboscadas, como não se perder pelo trajeto?

E então, quando estamos completamente absorvidos, vem a tempestade. Uma força descomunal que se impõe sobre tudo e todos, transformando o palco em um redemoinho de corpos e cenários. Cada espectador reage à sua maneira: uns sentem a angústia da imprevisibilidade, outros se entregam ao riso provocado pelo exagero coreografado, embalado pelo instrumental de “Imagine”, de John Lennon. O impacto da cena final depende do repertório de cada um, e essa multiplicidade de leituras é um dos grandes trunfos do espetáculo.

Créditos de Carol Castanho

Há sempre algo acontecendo. Cada olhar encontra um detalhe diferente, cada espectador traça sua própria linha narrativa. O elenco não apenas habita o cenário — ele É o cenário. Seus corpos se tornam ruas, muros, escombros, ventanias. É o tipo de peça que pede para ser vista mais de uma vez, porque cada novo olhar descobre nuances que antes passaram despercebidas. É assim que se constrói um público fiel, o boca a boca que leva mais gente ao teatro, as conversas que se estendem muito além da cortina fechada.

Espetáculos como Deriva são essenciais. Porque teatro não pode ser um espaço reservado apenas a quem já se sente representado. Ele precisa ser um convite, um porto, um território de descobertas. Precisa dar espaço para que mais gente chegue, se enxergue e decida ficar. E, acima de tudo, para que nenhuma visão — nenhum olhar, nenhuma voz — seja deixada à deriva.

Texto por Gabi Coutinho | No Teatro Curitiba

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