Da esquerda para direita: Reprodução Câmera de Vereadores de Curitiba (site oficial) | Reprodução Anitta em Funk Rave
Na data de ontem (12), fomos surpreendidos pela declaração do vereador Guilherme Kilter (NOVO), que, ainda que involuntariamente, revelou uma problemática latente na Câmara de Vereadores de Curitiba: a evidente escassez de pautas de relevância social. O parlamentar propôs uma moção de repúdio ao show da cantora Anitta, previsto para ocorrer no dia 15 de fevereiro na Pedreira Paulo Leminski.
Segundo Kilter, o evento traria impactos negativos à cidade, contrariando os valores da suposta “família tradicional brasileira”. O vereador ainda argumentou que a artista promove a “sexualização e a degradação da mulher”. No entanto, foi prontamente contestado pela vereadora Camila Gonga (PSB), que apontou a irrelevância do tema para o debate público. Diante da evidente fragilidade de seu argumento, Kilter optou por retirar a proposta, afirmando, contudo, que ainda encaminharia uma moção contra a artista, mas não contra o evento.
Um dos equívocos apontados por Gonga foi o impacto econômico positivo do show na cidade. “Apenas a equipe técnica e de produção do evento ocupa três hotéis na cidade”, destacou a vereadora, além de ressaltar que a classificação etária do show é de 18 anos, garantindo que ninguém comparece ao evento contra sua vontade.
Entretanto, a questão central é ainda mais profunda. Basta uma breve pesquisa para identificar uma série de problemáticas urgentes que poderiam e deveriam ocupar o tempo dos vereadores, em vez de discussões sobre eventos culturais. Desigualdade social, segregação urbana, disparidades de gênero e raça, ausência de políticas públicas eficazes e degradação ambiental são apenas algumas das questões que exigem atenção prioritária.
A insistência nesse discurso elitista e conservador não é acidental. O funk, por exemplo, é frequentemente alvo de repressão, apesar de movimentar cifras expressivas. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que o gênero movimenta R$ 127 milhões apenas no Rio de Janeiro, sem contabilizar seu impacto em todo o país.
Enquanto isso, a realidade nas ruas de Curitiba é alarmante. O número de pessoas em situação de rua cresce a cada dia, e é impossível transitar pelo centro sem se deparar com famílias inteiras em extrema vulnerabilidade social. Onde está a moção de repúdio a essa situação? Onde está a pregação sobre valores morais e familiares quando se trata da miséria crescente?
O silêncio também foi evidente quando uma ONG lutou contra a destruição de uma extensa área verde na Avenida Arthur Bernardes, uma região que liga os bairros Champagnat e Portão. Os órgãos públicos estavam determinados a transformar mais de um quilômetro de vegetação nativa em canaleta para ônibus. Nenhuma moção de repúdio foi proposta diante desse atentado ambiental.
De acordo com um artigo de 2024 do Observatório das Metrópoles, publicado em parceria com o Brasil de Fato Paraná, pelo menos seis problemáticas graves na capital deveriam ser debatidas em plenário:
- Desigualdade Social: Entre 2012 e 2021, Curitiba registrou um aumento de 55% no número de pessoas em situação de pobreza, saltando de 308.723 para 479.895. O número de pessoas em extrema pobreza também cresceu significativamente, de 52.957 para 91.941.
- Segregação Urbana: O índice de Gini da cidade, que mede a desigualdade territorial, é de 0,554, tornando Curitiba a líder dessa disparidade na Região Metropolitana.
- Desigualdade de Gênero e Raça: O rendimento médio de uma pessoa preta é apenas 83,6% do rendimento de uma pessoa branca. No caso das mulheres, essa proporção é de 84,8%.
- Baixa Qualidade de Vida em Regiões Periféricas: O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) apresenta um abismo superior a 0,300 pontos entre os bairros mais ricos e os mais pobres, onde até o acesso a políticas públicas é limitado.
- Falta de Políticas Públicas Eficientes: Múltiplos dados apontam para uma deficiência grave na distribuição de serviços públicos pela cidade.
- Degradação Ambiental: Casos como o da Avenida Arthur Bernardes ilustram a omissão do poder público na preservação ambiental.
É notável que, diante dessas questões prementes, não existam moções de repúdio da Câmara. No entanto, há tempo para atacar uma artista e um gênero musical reconhecido, em 2018, como patrimônio cultural pela Câmara dos Deputados. A perseguição ao funk não é coincidência: é um gênero nascido nas periferias, predominantemente negro e marginalizado. Por que não há reprovação similar para as letras machistas do sertanejo, gênero dominado por artistas brancos e elitizados?
Enquanto não olharmos para o problema da supremacia branca, burguesa e fascista que tem dominado os poderes políticos (como nos EUA, veja o texto sobre isso), infelizmente teremos que lidar com falas asquerosas como estas, com gestos nazistas como de Elon Musk e é claro, o pior virá: o fim do que conhecemos como sociedade e a volta do extermínio de qualquer pessoa que pense diferente.
Atacar uma expressão cultural é desqualificar toda uma classe artística e evidenciar a recusa em enfrentar os problemas reais da sociedade. Afinal, o que se entende por “família tradicional brasileira”? Trata-se de um conceito subjetivo, cujas variações incluem casais homoafetivos e diversas composições familiares igualmente válidas. Respeito é o que deve prevalecer.
Por fim, o show ocorrerá. O funk continuará sendo expressão cultural. E a luta contra discursos autoritários seguirá. O vereador deve desculpas à artista e ao público. Afinal, a opinião dele é mesmo representativa? Anitta já vendeu mais de 10 mil ingressos.
Ah, Anitta, nos vemos no sábado.