A Cia Ká de Teatro encerrou a segunda edição da Namoska com a estreia de “Pandora”, um espetáculo que se propõe a dissecar o medo em suas múltiplas formas. Inspirando-se no mito da caixa que libertou todos os males do mundo, a montagem costura performances que transitam entre o horror, o trauma e a angústia coletiva, lançando uma provocação essencial: o temor que nos aflige não é isolado. Ele é compartilhado, reverbera na experiência do outro.
A abertura do espetáculo nos imerge em um primoroso Teatro de Sombras, onde figuras espectrais emergem e desaparecem em um carrossel fantasmagórico. Elas se apresentarão em cena mais adiante, libertando seus medos e traumas. Em seguida, uma segunda performance expõe a raiva e o medo em sua materialidade mais crua e inquietante. A composição grotesca da cena nos impele a uma reflexão visceral: estamos reprimindo nossa própria fúria? Se sim, por quê?
O terceiro segmento desloca a discussão para o universo do futebol, questionando a imposição de um gosto. A heteronormatividade e as expectativas familiares incidem sobre o corpo masculino, corroendo-o silenciosamente. Aqui, o espetáculo toca em uma ferida latente: a vivência de um jovem homossexual que se viu obrigado a se encaixar nesse padrão social. O teatro se transforma, então, em um espelho da memória coletiva.
Outro momento relevante emerge ao problematizar a masculinidade tóxica e suas consequências. A performance, construída sobre a tensão dos elásticos de látex, simboliza a repressão brutal que incide sobre os homens desde a infância. Quando os elásticos se rompem, a cena nos lança a um abismo: o da impossibilidade de um respiro genuíno em uma sociedade que exige virilidade inquebrantável.
A narrativa então transita para o corpo feminino, explorando a dor do julgamento e a violência estrutural que o atravessa. O sangue, que deveria ser signo de vida, torna-se um elemento de destruição. A misoginia, como um espectro onipresente, persegue e aniquila, seja no plano físico, no espiritual ou psicológico. O espetáculo ressignifica o mito de Pandora para discutir as cicatrizes invisíveis de um mundo que insiste em silenciar suas mulheres.
A estética de “Pandora” se sustenta na simplicidade cênica, permitindo que as performances ocupem o espaço com força própria. No entanto, um ponto de tensão se estabelece na transição entre os quadros, por vezes excessivamente subjetiva. Se esta foi a intenção do diretor, Kelvin Millarch, ainda assim se impõe o questionamento: a fragmentação extrema compromete a comunicação com o público?
Millarch, ao lado de seu elenco, se entrega a um trabalho corporal minucioso e potente, que, embora requerem maior refinamento, carrega um impacto inegável. Revisitar traumas nunca é trivial, mesmo quando a terapia se encontra em dia. Mas transmutá-los em arte e em um corpo que brada suas dores é, sem dúvida, um gesto essencial. Ainda assim, em tempos em que a linguagem objetiva já se vê fragilizada, a performance exige um fio condutor mais claro, que não sacrifique a profundidade em prol da abstração.
Talvez esta seja uma leitura enviesada por uma sociedade que naturaliza a incompreensão da fé religiosa e marginaliza expressões artísticas não convencionais. O teatro contemporâneo, em sua busca por novas formas de expressão, frequentemente abandona a dramaturgia tradicional para se lançar ao campo da partitura corporal. “Pandora” abraça esse risco e, ao fazê-lo, propõe um debate inescapável: a arte precisa ser entendida para ser sentida?
Independentemente das questões formais, “Pandora” se revela um trabalho de força expressiva inegável da Cia Ká de Teatro. A montagem, embora mereça ajustes para amplificar seu impacto, permanece fiel ao propósito de inquietar. Ao final, a caixa se abre, mas a pergunta persiste: os medos foram libertos para se dissiparem ou permanecerão conosco, coexistindo para sempre na sombra de nossa existência?