Fotos: Maringas Maciel
Na noite de ontem, o grupo Mexa trouxe a Curitiba seu mais recente espetáculo, A Última Ceia, apresentado na Mostra Lúcia Camargo durante o 33º Festival de Curitiba, no acolhedor Teatro Zé Maria. Um espaço menor e intimista, perfeitamente adequado à atmosfera de proximidade e introspecção exigida pela proposta cênica, onde o público é convidado a participar de um banquete reflexivo em que morte e ressurreição não são apenas conceitos, mas impulsos que movem caravelas rumo ao insondável.
O espetáculo é um campo fértil de tensões e inquietações, centrado em um acalorado debate entre os próprios intérpretes sobre a continuidade do grupo de teatro. Uma discussão que se desenrola a partir da evocação da Santa Ceia de Da Vinci, a qual, aqui, ultrapassa em muito seu significado religioso e se transforma em um símbolo de despedida e renascimento — um rito teatral que subverte e dialoga com a tradição cristã, provocando os sentidos e a percepção dos espectadores. Há um dinamismo quase herético que permeia a encenação, desafiando interpretações lineares e exigindo entrega e atenção. A compreensão plena, contudo, não se dá sem resistência.
O elenco carrega um texto fragmentado, que transita entre o teatro pós-dramático e o teatro do oprimido de Augusto Boal, explorando uma linguagem performativa que se reinventa a cada instante. Cantam, dançam e declamam em uma cadência que parece construir-se e desconstruir-se continuamente, e a força cênica do elenco é inegável. No entanto, esse jogo performático, que flerta com a espontaneidade e a ruptura, por vezes resvala na dispersão, mais sugerindo intenções do que consolidando ideias.
A proposta de interação com o público é um dos grandes méritos de A Última Ceia, quebrando barreiras ao envolver a plateia em um processo ritualístico que culmina, no terceiro ato, com um convite para um jantar no palco. Esta aproximação desconcerta, encanta e cria uma cumplicidade visceral entre elenco e público, fazendo com que os espectadores deixem de ser observadores passivos para tornar-se parte do próprio acontecimento teatral.
Cenografia, iluminação e sonoplastia são executadas com precisão e criatividade, potencializando os momentos dramáticos e reforçando a tensão latente da narrativa. Esses elementos técnicos, de um apuro estético notável, elevam a encenação e criam uma atmosfera densa, quase mística.
Entretanto, direção e dramaturgia nem sempre se encontram. A montagem exibe um ímpeto louvável de questionar, subverter e provocar, mas a ausência de um fio condutor mais sólido acaba por diluir a potência dos temas propostos. Fragmentos de relatos pessoais, referências bíblicas e ecos da obra de Da Vinci se entrelaçam em uma miscelânea que, ao invés de ampliar a reflexão, tende a dispersá-la. Em vez de cenas potentes e imagéticas, temos sobreposições narrativas que explicam demais e mostram de menos.
O espetáculo oscila entre momentos de vigor e passagens que perdem o fôlego, especialmente quando a narrativa parece se dispersar em jogos cênicos que, embora inventivos, não são plenamente desenvolvidos. Imagens dos ensaios, projetadas em diversos momentos, surgem sem um propósito claro e se tornam ruído mais do que substância, um recurso que perde a eficácia por não estabelecer um diálogo coeso com a trama.
A ideia de um jantar compartilhado no palco é, sem dúvida, o ponto alto de A Última Ceia. O rito coletivo transforma o espetáculo em uma experiência única e íntima, promovendo um elo entre estranhos que partilham, ainda que brevemente, um momento de comunhão teatral.
Contudo, o uso da Santa Ceia de Da Vinci como objeto dramatúrgico revela-se problemático, ora deslocado, ora excessivo, sem encontrar um lugar orgânico dentro da estrutura narrativa. A peça teria se beneficiado se tivesse optado por explorar o fim ou a continuidade do grupo como tema central, utilizando o quadro como metáfora, não como espinha dorsal.
A Última Ceia é, em última análise, uma experiência instigante e provocadora para aqueles dispostos a embarcar em um teatro que se alimenta de questionamentos e provocações. No entanto, falta-lhe um rigor dramatúrgico que una seus muitos fragmentos e ideias em um todo mais potente e coeso. A pergunta final — “O grupo vai acabar?” — é menos inquietante do que outra, que ressoa além dos aplausos: “O que nos resta ao fim de um ciclo?”
Um espetáculo que, como o grupo que o encena, ainda parece em busca de si mesmo.