Qual o lugar do corpo gordo no teatro?

Reprodução: Centro Cultural Teatro Guaíra

Antes de começar, peço licença para transformar esta coluna em um desabafo. Há pouco tempo pediria desculpa, mas isso estaria associado ao fato de eu sentir culpa por alguma coisa, e desse mal eu não sofro mais. Dito isso, escrevo essas palavras não somente por experiência própria, mas porque acredito que o que tenho a dizer precisa ser ouvido. Precisa ecoar.

Eu, Gabi Coutinho, sou uma pessoa gorda. Digo isso sem vergonha, sem medo. Só que infelizmente, não posso dizer sem dor: é sofrido sim cada vez que percebo que o mundo não foi feito para corpos como o meu. E o teatro, infelizmente, não é uma exceção.

Quando me descobri artista, me questionei sobre as possibilidades que o mercado ofereceria para corpos fora do padrão. Quem seriam os personagens reservados para mim? Onde eu me encaixaria? Seria nos poucos figurinos de acervo que ninguém usa? Em papéis estereotipados e exagerados, quando muito? Senti desde o princípio muitas incertezas, mas acreditando serem “limitações da minha cabeça”, segui. Decidi que não tentar me impediria mais que seguir em frente e encontrar percalços, e assim fui fazendo da arte meu espaço, um sonho, um lar. Foi assim que pelo menos por um tempo senti ter encontrado meu caminho de cura, e passei a acreditar que esse amor era maior do que qualquer barreira.

Até que comecei a perceber que, mesmo quando eu não estava no palco, o teatro poderia sim ser uma ponte para lembrar que eu não pertencia. Quando junto com a Maduh Cavalli criei o No Teatro, me enchi de alegria ao imaginar que poderia incentivar mais pessoas a ocuparem a plateia, a viverem essa experiência tão transformadora. Pensei: se o teatro é lugar para todos, onde está todo mundo?

Bastou que eu, como público, me sentasse algumas vezes para encarar a dura realidade: todo mundo é muita gente. Inclusive eu… eu não era todo mundo. Me deparei com o desconforto de uma poltrona que não comporta meu corpo, um aperto que me fez prender a respiração em vários momentos, a necessidade de me encolher e pressão por sentir que deveria ocupar menos espaço. Não posso mentir que enquanto as peças aconteciam, a dopamina, a endorfina e todo e qualquer hormonio de alivio e felicidade tomavam conta de mim. Me permitia esquecer os problemas e tudo o que eu sofri parecia pequeno demais. Não era tão importante assim, era? Sentindo as pernas amortecidas, meu quadril preso, a circulação comprometida, junto à humilhação silenciosa de precisar lutar para sair do assento, eu fingia que estava tudo bem.

Nunca reclamei. Por vergonha. Por medo de parecer fraca. Por pensar que minha dor não era válida. A sociedade me ensinou que ser gorda era minha escolha e, por isso, qualquer desconforto era uma consequência que eu deveria aceitar. Me disseram que, se eu quisesse conforto, deveria pagar mais caro. Que acessibilidade era para quem realmente “precisava”, e que eu simplesmente não fazia parte desse grupo.

Mas eu faço. E tantas outras pessoas também.

Nas últimas semanas, visitei uns cinco espaços culturais diferentes. Em pelo menos quatro deles, senti dor. Num dos últimos, não consegui sequer prestar atenção na peça. O desconforto me dominou de tal forma que só conseguia pensar em sair dali. Foi quando entendi: eu não podia mais me calar. Soube no decorrer que alguns auditórios tem uma ou outra poltrona para pessoas gordas, mas onde consta essa informação? A equipe está preparada para lidar com isso? Qual o respeito e importância que efetivamente se dá a essa situação?

Decidi compartilhar minha experiência nas redes sociais e recebi muito mais respostas do que imaginava. Além de pessoas com muita empatia demonstrando carinho e interesse para ouvir o que eu tinha pra dizer, encontrei histórias semelhantes, de feridas que nunca cicatrizaram. Atores e atrizes que foram rejeitados por não terem “o perfil”. Profissionais da técnica que não conseguiram trabalho porque as escadas e acessos para as cabines eram completamente mal pensados e inacessíveis. Plateias que desistiram de frequentar o teatro porque não se sentiam bem-vindas e simplesmente não cabiam ali.

Tanta gente assim com dores relacionadas a espaços de arte e cultura? Não eram esses os meios que estavam me libertando pra ser quem eu era? Não. Isso NÃO PODE SER ASSIM. É um absurdo que eu tenha que pagar quase o dobro por passagens de avião porque poltonas padrão tem entre 40 a 48cm. É inaceitável que eu não possa fazer ressonância magnética em grande parte dos laboratórios porque o peso máximo é 110kg. Mas é tão triste e revoltante quanto, quando a arte e a cultura excluem tantas pessoas pelo corpo que elas tem.

Imagem do site da Assembleia Legislativa de São Paulo (foi das melhores que achei pra ilustrar um assento para pessoas gordas)

Essa luta não é só minha. NÃO PODE SER. Ela precisa ser de todos os que acreditam que cultura deve ser acessível em todas as suas formas. Precisa ser dos produtores, das companhias, dos teatros. Que repensem seus espaços, suas cadeiras, suas estruturas. Que percebam que acessibilidade não é um favor, mas um direito. Que não existe dor pequena demais e que toda e qualquer sensação de não-inclusão deve ser levada em consideração.

Deixo aqui o meu alerta e o meu apelo a todos que fazem parte desse ecossistema. E deixo também um abraço apertado a você que não pertence, seja como for, ao que muitas pessoas, lugares e afins consideram padrão. Você não está sozinho.

A mudança precisa acontecer, e ela começa quando nos recusamos a aceitar o que sempre foi imposto. Eu não me encolho mais. E espero que você também não.

Texto por Gabi Coutinho | No Teatro Curitiba

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