Um hino à exuberância cênica: A potência transcendente de ‘Entretelas’

Esplendoroso. Talvez este seja o epíteto que melhor circunscreva a experiência proporcionada pela encenação ‘Entretelas’, da Stultifera Companhia de Teatro, que galgou o palco do Espaço Excêntrico Mauro Zanatta. Quando se congrega um elenco de artistas tão potentes em um sítio de tamanha efervescência energética, o corolário não poderia ser outro senão a excelência. Munido de uma narrativa inebriante, cenários de uma opulência detalhista, figurinos de alta estirpe e um design de iluminação transformador, ‘Entretelas’ metamorfoseia-se em um ato vigoroso de inequívoca envergadura artística.

Jean Carlos Sanchez, em sua acurada direção, entrega ao público uma obra que evoca um grito interno de ressonância universal, latente nas profundezas da alma de cada indivíduo nesta sociedade contemporânea. Disseca a vida, sua dádiva intrínseca, suas matizes, suas riquezas, suas carências e a insanidade intrincada que este plexo de existências suscita. É a perfeição de uma direção coesa, profunda, imersa em um caos cênico que transcende a mera ótica do encenador, refletindo-se como um espelho de água cristalina em uma plateia sedenta pela mais pura manifestação da vida.

Com um libreto de intensidade pulsante e oscilante, navegando com maestria entre o drama mais pungente e a arguta comicidade, “Entretelas” não se propõe a extrair o pranto fácil; sua teleologia é mais elevada. Contudo, consegue fazer uma elevação emocional quase mística onde por pouco mais de duas horas a catarse aristotélica acontece entre um emaranhado de sentimentos. Raiva, dor, medo, angústia e risadas. Hoje em dia, são escassos espetáculos longos que não nos fazem olhar no relógio o tempo todo.

Embora em certas inflexões a prosa discursiva quase suplante a ação dramática, Sanchez demonstra a habilidade de sustentar o ritmo dramatúrgico mesmo nos momentos de maior introspecção ou lentidão.

O cenário de Tiago Surek e Katia Horn, por si só, configura um acontecimento estético. Um aro central que materializa a noção de espetáculo através de cenas literalmente dispostas “entre telas”, em consonância com o título da obra, mas que se permite um jogo de vaidade cênica audaz, desprovido do temor ao erro e ao acerto em igual proporção. Transmuda uma epifania visual em uma reflexão de profundidade abissal. Imersa no seu próprio labirinto dramatúrgico, a cenografia capta a quintessência de algo que, talvez, seria incomunicável pela via da palavra. Cada detalhe, neste constructo, se revela primordial.

O figurino de Katia Horn, estabelece um diálogo eloquente com a mise-en-scène de cada um dos três atos, é um ponto fulcral que merece destaque e visibilidade. A uniformidade cênica borda a perfeição com elementos que transmutam um mero gesto em uma performance corporal estonteante.

O percurso da obra alinha-se gradualmente com as cores primárias de cada ato – o vermelho, o azul e o amarelo – mas não sem antes sermos embevecidos pela pureza do branco. Na vertigem insana de personagens que são arquétipos da história ocidental e nas evocações pictóricas de valor inestimável, ‘Entretelas’ nos conduz a um riso amargo ante a hipocrisia humana, a sua carência e a supérflua presunção de superioridade entre os pares.

A trilha sonora, por sua vez, bebe desta misticidade cênica, renovando-se a cada monólogo, mesmo que em alguns instantes tenha ressoado com um certo exagero enfático.

No campo da atuação, a Stultifera Companhia merece todos os louros. Não seria de surpreender se alguns destes nomes viessem a figurar nos altos escalões da arte dramática nacional em um futuro próximo.

Samara Rocha carrega no olhar a complexidade de uma alma multifacetada, infundindo em suas personagens uma potência que emana da alma, e não apenas do corpo. Tiago Bubniak debruça-se sobre a sua própria loucura energética para evocar, de um plano astral transcendente, o que ele nomina de atuação, mas que beira uma culminância incomparável.

Henrique Augusto materializa múltiplas existências em uma única encarnação dramatúrgica. Seus gracejos ácidos e necessários, unidos à sua potência corporal, guiam o olhar de uma plateia ávida pela sua imagem.

Thayna Bressan é uma energia simbiótica capaz de inebriar qualquer espectador que se recuse a ceder ao seu chamado cênico. Seu corpo narra uma história intrínseca, de dentro para fora, que apenas ela é capaz de decifrar e revelar.

Tiago Surek transmuta o palco em seu Olimpo pessoal, exibindo ao público uma força que até mesmo as divindades hesitariam em questionar. Enquanto que Laércio Amaral prescinde de apresentações. Seja na penumbra ou sob o feixe mais intenso do holofote, é impossível negligenciar sua presença cênica, que, tal como seu personagem, tangencia a insanidade – ou talvez a abrace por completo. Amaral é capaz de induzir a plateia ao delírio estético com a mera força de sua presença.

Por fim, Alini Maria dialoga ludicamente com a sensibilidade do público, exibindo sua força e vitalidade dramatúrgica com notável destreza.

‘Entretelas’ é um espetáculo transformador. É profundamente improvável que um único espectador em plena faculdade mental atravesse este ritual teatral e permaneça inalterado. É a invocação da arte dionisíaca que não se testemunha em qualquer lugar do mundo, mas que se manifestou em um espaço de resistência artística, atestando que a vitalidade dos deuses do teatro é primitiva e digna de reverência.

Àqueles que não se permitiram o mergulho neste rito, resta apenas o sentimento de lástima, porquanto desconhecem o quão empobrecida ficou a sua própria experiência estética.

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