Por Gabi Coutinho e Maduh Cavalli
“Toda vez que alguém troca um sonho por uma meta, morre um poeta.” – Essa frase, retirada do próprio texto do espetáculo “Madrugueiro, ou Alice na Cidade Sorriso” da companhia Nanna Núcleo de Criação, resume bem o que sentimos ao assistir essa peça tão delicada quanto potente. Uma apresentação leve, que entretém de maneira descontraída e que, mais do que isso, acolhe o espectador. A gente ri, se emociona e se diverte, não é esse tipo de espetáculo que chega com impacto, que te arrebata de imediato. A peça encanta de outro jeito: ela te conduz com leveza, com cuidado, com beleza nas pequenas coisas. É preciso estar aberto a essa delicadeza. É como poesia: sutil, mas transformadora.
O elenco está afinadíssimo, e as coreografias nos ganharam logo de cara pela leveza e pela sincronicidade encantadora. É como se cada gesto, cada movimento no palco, estivesse em harmonia com a emoção da cena. A iluminação é um ponto alto: nos transporta diretamente para o universo mágico da peça, nos fazendo enxergar, com os olhos e com o coração, cada detalhe da Cidade Sorriso.
O repertório musical é um dos grandes trunfos do espetáculo. Se as versões originais já são um afago no peito, as adaptações para ensemble com aberturas vocais e outros toques de teatro musical ficaram tão fluidas e bem arranjadas que facilmente poderiam integrar uma playlist do dia a dia. Inclusive, deixamos aqui o nosso apelo de que precisamos dessa trilha nas plataformas! A curadoria, que vai de Nhô Belarmino a Jovem Dionísio, mostra um domínio de linguagem e um respeito profundo à pluralidade sonora do Paraná.
A cenografia, mesmo com momentos grandiosos como a estação-tubo que se integra às coreografias, mantém uma simplicidade poética que aproxima palco e plateia. A estética da peça dirigida por Nanna Mercury flerta com o lúdico, com elementos caricatos e simbólicos que embaralham o real e o imaginário. Nós nos vimos como Alice, transitando entre sonho e memória, entre saudade e descoberta. É teatro que pulsa sensibilidade sem perder o rigor.
Por Maduh Cavalli
Gabi Coutinho:
Eu, Gabi Coutinho, sempre fui apaixonada por Curitiba de uma maneira que nunca soube explicar. Mas Madrugueiro traduziu essa sensação de um jeito que vai muito além das palavras: a peça transforma a cidade em linguagem cênica no corpo, na voz e na trilha, tão bem que agora quem me ouve falar com tanto amor dessa cidade talvez finalmente entenda porquê.
Confesso que no início, com as pausas para aplausos induzidas a cada música, levei um tempo para me entregar à narrativa. Essa quebra de fluxo no começo dificultou um pouco a imersão. Mas à medida que a musicalidade se aprofundava e as coreografias IMPECÁVEIS ganhavam força, fui completamente capturada. A condução da encenação pelo corpo e pela música, trabalhada em camadas sutis, permitiu que a dramaturgia emergisse de maneira orgânica e sensorial. Tudo se encaixava tão perfeitamente que só não parecia robótico por conta da emoção e da leveza envolvidos. Era quase hipnotizante.
Como boa capricorniana que já viveu o burnout de perto, obcecada por metas e produtividade, me vi profundamente tocada por essa história. Hoje, tão conectada com a arte, percebo o quanto a escrita, o teatro e a música podem ser tão essenciais quanto números e resultados, ou talvez ainda mais. Madrugueiro me acolheu neste lugar. Ver no palco uma narrativa que fala sobre reencontro com o sensível, com os sonhos esquecidos e com a poesia do cotidiano foi como olhar no espelho e lembrar que a arte já me salvou muitas vezes sendo artista. E nesse caso, mais uma vez me transformou como plateia.
Por Maduh Cavalli
Maduh Cavalli:
O texto de Anna Toledo é uma verdadeira poética da cidade de Curitiba. Em cada fala, em cada imagem construída pela palavra, reconhecemos traços profundos da cidade: suas paisagens, seus silêncios, seus hábitos e até suas peculiaridades climáticas. Para quem vive aqui, é impossível não se sentir abraçado pelas referências sutis, ou explícitas, que brotam do palco. Ao mesmo tempo, o espetáculo não se fecha em si. Ele se abre como uma janela generosa para quem vem de fora, oferecendo um convite sensível a conhecer Curitiba não apenas como cenário, mas como personagem viva, pulsante e cheia de nuances. É uma dramaturgia feita de dentro para fora: nasce da alma da cidade e se irradia em direção a quem assiste.
Como grande admiradora da arte local, em especial da nossa música, foi impossível conter a emoção ao reconhecer as canções que costuram a trilha sonora do espetáculo. Mais do que uma ambientação sonora, a trilha funciona como uma extensão do texto: ela nos atravessa, ativa memórias, provoca sorrisos e até nos emociona. A trilha sonora é mais do que um elemento de cena; é memória e identidade.
E a poesia, que é colocada de um forma tão bonita, tão necessária no espetáculo. Falar sobre poesia hoje é falar sobre ver o mundo através das coisas, e não apenas por cima delas. Em um tempo em que tudo é urgente, ver um espetáculo que nos convida a desacelerar e a perceber o que há de poético na cidade, na rotina, na vida, é um presente.
Como artistas de teatro musical, assistir a uma obra que costura tão bem dança, música e teatro já seria especial. Mas o espetáculo ainda mergulha na literatura e na poesia, o que eleva tudo a um novo patamar. Madrugueiro é um manifesto lírico que celebra o sensível, em uma dramaturgia inspirada por Helena Kolody, Paulo Leminski e Poty Lazzarotto, e isso se sente em cada detalhe da encenação.
A “Cidade Sorriso” nos lembrou que ainda dá tempo. De sonhar, de sentir, de desacelerar. De ouvir os poetas antes que eles desapareçam.
Serviço:
Espetáculo: Madrugueiro ou Alice na Cidade Sorriso
Onde:
Teatro Regina Vogue, Av. Sete de Setembro, 2775 – 2004 – Rebouças (Shopping Estação)
Quando:
Quinta-feira (31/07) Estreia às 20h.
Sábado (02/08) às 16h e às 20h.
Domingo (03/08) às 15h e às 18h
Classificação: Livre
Realização: Nanna Núcleo de Criação
Direção Geral: Nanna Mercury
Roteiro e Letras: Anna Toledo
Direção Musical: Tony Lucchesi
Ingressos: a partir de R$ 25,00
Vendas pelo Disk Ingressos: Link
Foto de capa: Por Nay Klym