“Coringa, Delírio a Dois” incomoda porque diz a verdade

Foto: Reprodução / Warner

A repercussão negativa de “Coringa, Delírio a Dois” foi antecipada pelo diretor Todd Phillips e retratada nas cenas finais do filme. Contém spoilers.

Lançado em 2019, o “Coringa” de Todd Phillips e Joaquin Phoenix é uma obra de arte. É difícil achar algum aspecto que não tenha sido feito com maestria. Tudo no filme é pensado para pesar o coração no peito do espectador: fotografia escura e sem cor; trilha sonora que explora instrumentos de tessitura grave e timbres carregados; mise-en-scène que destaca o caos; câmeras que fecham no rosto (e no sofrimento) de Arthur; atuações dignas de Oscar.

No meio disso tudo, o que ganhou mais destaque – ou tanto quanto Joaquin Phoenix – foi o roteiro. “Coringa” conta a história de um homem que sofreu – e continua sofrendo – violência física, psicológica e emocional, até o momento em que decide devolver ao mundo toda a brutalidade de que foi vítima desde sempre.

O vilão foi abraçado como símbolo da luta contra o statu quo. Foi tido como potencialmente subversivo, por disseminar a ideia de que fazer justiça com as próprias mãos é o melhor remédio para os problemas do mundo.

 

Vocês entenderam tudo errado

“Coringa, Delírio a Dois” vem para mostrar que essa não era a mensagem que Todd Phillips queria passar (a própria opção por fazer um musical mostra a ruptura com o primeiro filme). Somos sim, uns mais do que outros, vítimas da sociedade. Produtos do meio em que crescemos e vivemos. Mas isso não é justificativa para enfrentar o mal com o mal. 

Ao contrário do que se pensa, o diretor não fez apologia à violência no primeiro filme. Todd queria mostrar para o mundo como o nosso sistema é falho e o tipo de problemas que ele produz. É apenas uma constatação, um diagnóstico.

Foto: Reprodução / Warner

Um olhar para dentro

A cena de abertura do novo filme traz a luta entre Arthur Fleck e sua sombra (o Coringa) pelo controle de sua mente, numa clara referência a Carl Jung e a psicanálise. Esta é a tônica de todo o longa. 

Segundo Jung, quanto mais luz jogamos sobre nós mesmos, maior fica a nossa sombra. Esta metáfora quer dizer que não somos bons nem maus: somos os dois. Quanto mais buscamos o autoconhecimento, mais aprendemos sobre nossos defeitos e suas origens.

“Coringa, Delírio a Dois” gira em torno do julgamento de Arthur Fleck pelos crimes que cometeu no primeiro filme, mas o tribunal bem poderia ser a internet e as redes sociais, onde o ódio e o cancelamento caminham de mãos dadas, destilando veneno e tornando o mundo mais tóxico para quem não se encaixa na expectativa alheia.

Com o desenrolar da trama, Arthur, que num primeiro momento lança mão da sombra (o Coringa) para se defender, compreende que não existe justificativa para os crimes que cometeu. Decide, então, se reconciliar com o seu lado sombrio e pagar pelo que fez – momento em que as pessoas do tribunal deixam a sala, como os fãs do primeiro filme que rejeitam o segundo.

Este filme é sobre auto responsabilidade e ninguém quer saber disso. Em 2024 ainda somos uma sociedade que joga nos outros a culpa (e o controle) sobre o que acontece conosco. Que se nega a olhar para si e tomar as rédeas da própria vida.

 

A verdade dói 

Lady Gaga e Joaquin Phoenix são o suprassumo da falta de química. Em nenhum momento nos convencemos de que são um casal. Mais um mérito dos dois. A relação de Arthur e Lee está na idealização que um faz do outro e existe apenas na cabeça deste e daquele. É um elo frágil que se rompe tão logo as expectativas são quebradas. Exatamente como os fãs que exigiam uma continuação com mais do mesmo, que imaginaram um Coringa subjugando o sistema, e que jamais entraram na sala de cinema receptivos ao trabalho do diretor.

Existe muito debate sobre o que é arte. Há quem diga que tudo aquilo que expressa alguma coisa é arte, não importa a sua forma. Fazer arte deve ser inclusivo e isso é mais importante do que a qualidade da arte consumida. São contra a própria ideia de “arte de qualidade”.

A verdade é que vivemos num tempo em que o poste urina no cachorro. O público dita a arte que quer consumir e por isso consome arte nenhuma – seja no cinema, na música ou em qualquer outra coisa. Apesar da arte ser uma forma de entretenimento, nem todo entretenimento é arte. 

Todd Phillips é um artista do cinema e por isso seu trabalho incomoda. Todd não faz o filme que queremos ver, mas o que precisamos ver. E a verdade dói. Na última cena de “Delírio a Dois” o diretor finalmente transforma Arthur em mártir, mas não aquele que o público fantasiou no primeiro longa. Ao assassinar Arthur, o Coringa que as pessoas queriam finalmente aparece, refletindo a loucura alheia que insiste em matar o trabalho do diretor.

Leia mais: Coringa: Delírio a Dois – Quem nunca quis ser amado?

 

 

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