Reprodução Dreamworks
(Atenção: O texto a seguir contém spoilers do filme. É recomendado ter assistido ao longa antes de ler)
“Existiam dragões quando eu era menino.” É com essa frase que o personagem Soluço abre o primeiro livro de Como Treinar o Seu Dragão. No entanto, ela também se aplica a mim. Existiam dragões — ou eu passei a acreditar que existiam — quando eu era menino, mais precisamente no ano de 2010. Um dos meus hobbies favoritos na infância era ir ao cinema ao lado da minha mãe e conferir os próximos lançamentos na telona. Foi dessa maneira que conheci um filme chamado Como Treinar o Seu Dragão, experiência da qual tenho o prazer de me recordar vividamente. A emocionante jornada de Soluço e Banguela viria a se tornar não só uma das minhas sagas animadas favoritas, como também alguns dos meus filmes favoritos da vida.
2025 é um ano importante para a franquia. Não apenas por marcar o 15º aniversário do primeiro filme, mas também pelo retorno de Como Treinar o Seu Dragão às salas de cinema com uma adaptação em live-action, recontando a icônica história de amizade proibida entre um garoto viking e um temível Fúria da Noite. Para entrar no “hype” do novo lançamento, convido você, caro leitor e leitora, a embarcar nesta retrospectiva preparatória sobre uma das trilogias mais amadas das animações.
Caso você nunca tenha assistido a nenhum dos filmes ou apenas faz tempo desde a última vez que os viu, aqui está a premissa básica da história. Inspirado no livro homônimo de Cressida Cowell, Como Treinar o Seu Dragão narra a trajetória de Soluço, um jovem viking que vive em uma comunidade onde humanos e dragões são inimigos mortais há séculos. A vida do garoto muda completamente quando ele encontra Banguela, um dragão Fúria da Noite, com o qual forja um forte vínculo de amizade.

De forma bastante ágil e eficiente, o roteiro apresenta tudo que precisamos saber sobre a história e o conflito da trama já na cena de abertura. Logo nos primeiros minutos, conhecemos Soluço, o quanto ele destoa dos demais vikings, sua inteligência, o conflito entre Berk e os dragões, as diferentes espécies e o que o personagem almeja: conquistar a aprovação e o orgulho de seu pai, Stoico, o líder da tribo, e de Astrid, a garota por quem é apaixonado.
Soluço é um ótimo protagonista justamente por ser a completa subversão do que esperamos de um herói em histórias de aventura e fantasia. Ele é um garoto franzino, contrastando bastante com a ideia de guerreiro másculo e ideal que Stoico representa. No entanto, o que lhe falta em aptidão física, Soluço mais do que compensa com sua inteligência, curiosidade e coragem. Por ser considerado fraco demais para o combate, tornou-se aprendiz de ferreiro com Bocão — um excelente e carismático alívio cômico, por sinal.
A DreamWorks é conhecida por criar histórias e protagonistas que subvertem expectativas, como Shrek, Po e Megamente, e com Soluço não é diferente. Mesmo fugindo de todas as normas, convenções e expectativas de sua comunidade, ele consegue se tornar alguém excepcional à sua própria maneira. Isso é explorado ao longo de toda a trilogia, e já no primeiro filme conseguimos ter um vislumbre de suas habilidades — seja na hora de construir a engenhoca que derruba Banguela, a prótese de cauda para o dragão, ou na forma como a simples observação e o convívio com o Fúria da Noite expandem seu conhecimento sobre os dragões e seus comportamentos.
Obviamente, não poderia falar de Como Treinar o Seu Dragão sem mencionar o outro grande protagonista da franquia: o dragão Banguela. A começar por seu design, que é simplesmente perfeito. Para quem não sabe, o visual do dragão nos livros é o de um pequeno réptil verde, semelhante a uma iguana ou lagarto. O visual do dragão Terror Terrível é, na verdade, o visual original de Banguela nos livros. Quando Dean DeBlois e Chris Sanders — a dupla de diretores e roteiristas — assumiram o projeto, o design foi alterado. Com elementos de panteras, morcegos e do Stitch (já que a dupla também escreveu e dirigiu em Lilo & Stitch), criou-se um visual que consegue ser simultaneamente fofo, ameaçador e icônico. Assim nasceu o Fúria da Noite que todos amamos.
Além de seu excelente visual, o personagem é muito expressivo e carismático, tornando a conexão entre Soluço — e o público, por extensão — muito mais fácil. O roteiro dá bastante tempo para que a relação entre ambos seja construída, rendendo momentos cômicos e adoráveis, que tornam a cena em que o laço de amizade finalmente se constrói ser poderosa e emocionante.

Em seu cerne, Como Treinar o Seu Dragão é uma história que debate temas como amizade, crescimento e preconceito geracional — algo personificado no antagonista da história, Stoico. Embora o filme tenha, de fato, um vilão — o dragão Morte Rubra —, Stoico e a tradição viking de matar dragões representam o verdadeiro obstáculo que a dupla protagonista deve superar. Quando Soluço questiona o pai sobre a necessidade de matar dragões, Stoico vê isso como uma ofensa, já que foi criado em um ambiente e sociedade em que se espera que os membros se tornem guerreiros fortes, imponentes e matadores de dragões.
“Eles mataram centenas de nós.” / “E nós matamos milhares deles.” — esses diálogos exemplificam bem a temática que a trama visa abordar. Após 300 anos, Soluço é o primeiro viking a questionar se as crenças de gerações da tribo realmente estavam corretas, o que naturalmente gera atritos com seu pai. O roteiro articula bem esse conflito, não só pelo embate entre Soluço e Stoico, mas também por meio da personagem Astrid.
Astrid, em muitos aspectos, representa tudo o que Stoico desejava que Soluço fosse: forte, destemida e pronta para a batalha. Dentre o grupo de jovens vikings, ela é claramente a guerreira mais habilidosa e completamente imersa na cultura de sua aldeia, disposta a “assumir a guerra de seus pais contra os dragões”, como ela mesma diz. Surge até uma rivalidade entre ela e Soluço quando, inesperadamente, ele demonstra grande aptidão no treinamento de dragões, cortesia do tempo ao lado de Banguela.
Quando finalmente o confronta e descobre a verdade sobre ele e Banguela, Astrid se mostra hesitante num primeiro momento, mas logo repensa seus conceitos em relação aos dragões. Mesmo quando Soluço diz estar disposto a ir contra seu pai e toda a tribo por Banguela, ela demonstra apoio, ao perceber que os dragões não são os monstros que acreditava serem.

Além de ser uma personagem bem escrita, carismática e que rouba a cena em diversos momentos, a evolução da relação entre Soluço e Astrid — de rivalidade para amizade e, possivelmente, um romance — é encantadora de assistir. A título de curiosidade, Astrid é uma personagem completamente original dos filmes; ela não existe nos livros de Cressida Cowell. Diga-se de passagem, essa foi apenas mais uma das excelentes mudanças e adições feitas por DeBlois e Sanders ao longa.
Para quem não sabe, Dean DeBlois e Chris Sanders assumiram a direção do projeto no meio da produção e praticamente tiveram de reescrever e refazer boa parte do filme em apenas 15 meses, a fim de cumprir a data de lançamento prevista. Impressiona o quanto a dupla conseguiu, em tão pouco tempo, entregar uma jornada com ótimos personagens e uma trama recheada de emoção.
Falando em emoção, um elemento que eleva ainda mais as cenas é a magistral trilha sonora composta por John Powell. Faixas como This Is Berk, Forbidden Friendship, Test Drive e Romantic Flight são belíssimas, complementando perfeitamente a atmosfera emocional de cada cena. Desafio você a assistir ao filme e não sair cantarolando os temas depois.
Quanto aos aspectos técnicos da animação, ela ainda continua visualmente impressionante, mesmo 15 anos após seu lançamento. Claro, existem certos aspectos — especialmente na textura de objetos, roupas, pele e vegetação — que podem parecer datados para os padrões atuais, mas isso está dentro do esperado para filmes animados da época e não compromete a experiência. Outro ponto que merece destaque é a fotografia, recheada de enquadramentos belíssimos que transmitem emoção e empolgação — como na icônica cena do primeiro voo de Soluço e Banguela.

Gostaria também de comentar sobre o final do filme, e aqui devo dar muito crédito aos idealizadores do projeto pela coragem em executá-lo da maneira como fizeram. Após um épico confronto com o Morte Rubra, vemos Soluço despertando em sua cama com Banguela ao seu lado. Quando o protagonista se levanta, o público é surpreendido: Soluço perdeu a perna esquerda e agora usa uma prótese.
Lembro vividamente de como meu eu de seis anos ficou impactado ao ver essa cena no cinema. DeBlois e Sanders queriam representar a ideia de que nossos heróis enfrentaram uma grande ameaça — e que não sairiam dessa situação sem cicatrizes. Foi uma decisão arriscada, como eles mesmos afirmaram, mas que valeu muito a pena, tornando o final ainda mais impactante. Além disso, há algo bastante poético: tanto Soluço quanto Banguela perderam um membro do lado esquerdo do corpo. Estão simetricamente feridos — e ainda mais conectados.
Após essa revelação, somos presenteados com mais uma surpresa: Berk tornou-se uma sociedade onde vikings e dragões convivem em harmonia. Stoico, Astrid e os demais berkianos tiveram suas vidas transformadas graças a um garoto — considerado pária pelos outros — corajoso o bastante para questionar uma tradição secular e formar uma amizade inquebrável com quem antes era considerado o inimigo.
No fim das contas, como é a experiência de (re)assistir Como Treinar o Seu Dragão 15 anos depois? Tão boa quanto a primeira vez! Este é um filme que envelheceu como vinho e continua encantando pessoas de todas as idades com seus personagens cativantes, história envolvente e um universo fantástico no qual acreditamos, mesmo que só por algumas horas, que dragões realmente existem. É dessa forma que a DreamWorks dá um início perfeito àquela que, em minha humilde opinião, é a melhor saga da história do estúdio.
Por mais que eu tenha minhas ressalvas quanto a adaptações live-action de animações, estou bastante curioso e confiante em Dean DeBlois, para ver como ele trará a incrível história de amizade entre Soluço e Banguela a uma nova geração.