06 de abril de 2024. O Guairão lotado. O público que já conhece o trabalho de Deborah Colker começa a ocupar os mais de dois mil lugares entre plateia e os dois balcões. No hall, uma lojinha vende produtos de uma das maiores companhias de dança do país. As luzes se apagam, as cortinas se abrem como um majestoso teatro precisa fazer e surge então um único bailarino no centro do palco com um bambu iluminado de branco, como um sabre de luz.
A dança começa e nem devemos chamar de dança, mas de Dança, com D maiúsculo. É celestial, algo exímio e que nunca se vê ou viu. A história da humanidade não é simplesmente contada ou narrada, ela é um acontecimento inédito. Colker e sua trupe trazem o que os livros de história não fazem, mesmo tendo se baseado neles para essa criação.
Conforme o espetáculo se desenvolve e os demais bailarinos entram em cena, vemos o quanto o trabalho corporal deste elenco se faz presente. É indescritível. São bailarinos com bambus ou bambus com bailarinos? É difícil distinguir. A cada gesto, cada passo, vemos que aqueles corpos transcendem qualquer gestualidade. Nem Laban, nem Artaud poderiam imaginar em seus pensamentos mais profundos.
Desde o começo, minhas emoções já estavam a flor da pele por mais um trabalho de Colker. A trilogia iniciada em ‘Cão sem plumas’, precedida por ‘Cura’ e que se encerra em ‘Sagração’, traz uma história não linear contada por corpos. Durante sua entrevista mais cedo naquele dia na Sala de Imprensa Zé Celso do Festival de Curitiba, hipnotizado por vê-la explicar o processo de laboratório e pesquisa corporal, a única coisa que me passava na cabeça era: como ela vê o mundo ao seu redor?
Com certeza não é de forma comum. Um corpo que pensa e existe, e que não está a serviço da mente clássica do homo sapien, não pode existir e ver o mundo de forma comum. Deborah Colker é um acontecimento para além da gestualidade cênica e linguagem artística, mas para o espírito de cada ser humano. Vê-la pessoalmente foi um dos momentos mais felizes de minha trajetória na arte.
E seu espetáculo, mais uma vez, é assim. É hipnotizante, impossível de desviar o olhar. A poesia corporal é algo que seus bailarinos não deixam cair nenhum momento. A conexão entre os movimentos é tão forte que faz parecer que todo aquele conjunto da obra – iluminação, música, figurino, cenografia e coreografia – não foram propositalmente pensados, mas organicamente acontecem.
Quando Eva surge no palco em sua representação verdadeira, e não europeia como no vendem nos livros de história, o arrepio é certo. O corpo preto que luta com sua gestualidade poética para transformar sua realidade é tocante. Até mesmo personagens pouco cativantes como Abraão tornam-se fortemente persuasivos quando aparecem em cena.
Em ‘Cura’, é fato que Colker se debruça a freneticidade musical e seus corpos são mais rígidos, para aquilo que não tem cura. A dor de existir, de pensar, de não ser comum, do incomum e das batalhas internas da mente. ‘Cão sem plumas’, o começo da trilogia, tem corpos mais soltos e que se encontram neste trabalho recém estreiado. Uma curva dramatúrgica que pode não ter sido pensada e planejada, mas com certeza traz ao público – que assistiu aos três espetáculos – toda a vivacidade necessária.
É como se disséssemos, da maneira mais ínfima possível, que o ser humano nasce, aprende sobre seu meio, apega-se de suas dores internas e externas e por fim, sagra aquilo que é mais sagrado: sua própria existência. Essa que por muitas vezes não parece ser importante.
Em ‘Sagração’, Colker mergulha e se apropria de Igor Stravinsky (1882-1971). Traz para o palco de 2024 a polirritmia que só um russo poderia imaginar em meio ao caos que a humanidade passava durante seu apogeu, como a primeira e segunda guerra-mundial. Enquanto os norte-americanos se perdiam no um, dois, três e quatro, Stravinsky – e portanto Colker agora – brinca com a rítmica que um, dois, três, cinco, quatro, podem proporcionar.
Assim, a dramaturgia que Deborah cria é uma apoteose cênica. Algo que a dança-teatro brasileiro precisa ver com olhos atentos, pois é a história sendo contada – ou melhor, recontada – enquanto faz história ao mesmo tempo.
A evolução da humanidade sem sua forma mais íntima. Bactérias, herbívoros, a descoberta do fogo, o que um corpo faz, plantio, até a sua própria destruição, período exato em que a espécie se encontra atualmente.
Claudia Kopke traz um figurino que conversa com cada momento histórico que Colker se propõe. É brilhante como ela consegue trazer a vivacidade imaginativa que cada gestualidade empreende naquele existir. Já Alexandre Elias se veste de Stravinsky junto com Deborah para criar ou redimensionar a trilha sonora. Cada segundo existente neste grande espetáculo de 70 minutos é minuciosamente pensado, articulado e projetado para que os homo sapiens que evoluem se comuniquem com os homo sapiens que assistem.
Gringo Cardia traz o elemento do bambu para o palco, mesmo diante dos desafios empíricos e cenotecnicos. Não importa, o que ele faz é brilhante em uma contação de história não ficcional, mas real. Da evolução para a anti-evolução humana.
O saudoso Beto Bruel desenha a iluminação do espetáculo com tanta facilidade e maestria que parece brincar com cada foco de luz. Não parece ser real aquilo que tamanho time talentoso e esteticamente divergente, poderia se converger e transformar ‘Sagração’ num espetáculo histórico e memorável.
“Alguns dizem que é o Cirque du Soleil no palco”, brincou Colker durante a coletiva. Por mais fã de carterinha e pesquisador do Cirque canadense que eu seja, ouso dizer que em sua grande trilogia, Deborah faz mais que um Cirque du Soleil, mesmo sem usar da linguagem circense. E não falo no sentido diminuitivo, pois são linguagens diferentes, mas no de propor algo diferente, exótico e inovador.
‘Sagração’, assim como Cura e Cão Sem Plumas, é o Brasil espaço-corporeo em cena para cada brasileiro ou ser humano que ouse questionar a capacidade artística de um artista nacional. É para além do imaginário dos estudiosos da cena, o que se pode fazer fora dos livros e no palco, ou estúdio, como preferir.
Concluo que este é mais um espetáculo que celebra Stravinsky e a humanidade, de forma que nem o próprio russo poderia sequer sonhar. Quando as cortinas se fecham sob forte aplauso, o que sinto é uma emoção dilacerante de que não poderia mais me prender a esse momento, a esse sonho e a tal poesia corporal. O choque de ver a realidade ao meu redor foi tenebroso, pois o mundo de Colker nos convida cada vez mais a morar nele e se apropriar.
Por fim, ‘Sagração’ sagra a humanidade, as dores, seus pensamentos autodestruitivos, suas vitalidades. Ou melhor dizendo, nossas dores, nossos pensamentos autodestruitivos e nossas vitalidades. Pode ser a conclusão de um trabalho, mas não de um existir, já que cada gesto e poesia criada por cada bailarino, resistirá para sempre.