“Querida Serpente” e a desconstrução do corpo como interdito

Eva mordeu a maçã e, desde então, a mulher carrega a culpa. Mas teria Eva, de fato, comido o fruto proibido? Ou teria sido devorada pela serpente? Questões como essas reverberam na contemporaneidade, quando revisitamos narrativas bíblicas e confrontamos sua verossimilhança. Afinal, ficção é ficção.

“Querida Serpente”, novo espetáculo da Alameda Cia Teatral, opera nessa fratura simbólica, desmantelando tabus que cercam o corpo humano. Se sentar-se à mesa é sagrado, por que falar sobre sexo ainda é um interdito? Não seria a sexualidade, assim como a alimentação, uma das bases essenciais da existência?

O ritual teatral se inicia antes mesmo da cena. No hall do teatro, o público é recepcionado com um brinde – à arte, ao desejo, à pulsão dionisíaca, à vida. A quarta parede se dissolve ali, quando atores e atrizes, despindo-se de suas personagens, interpelam a plateia em um jogo de confidências. “Quem aqui já passou por esta situação?” O teatro se torna um espaço de experiência partilhada.

Ao adentrarmos a sala, nos deparamos com uma arena cênica, onde uma imponente mesa de 4m x 4m instaura um convite irrecusável: sentar-se junto aos personagens e compartilhar a ceia. A cenografia, embora minimalista, é precisa – uma mesa com aberturas estratégicas, permitindo o fluxo dos corpos, a renovação dos figurinos, a exposição da nudez. Aqui, a materialidade do espaço é um dos pilares da obra.

A dramaturgia, inspirada no estudo de Maria Del Piore sobre os interditos do corpo, transita entre a reflexão histórica e o jogo sensorial. A nudez, introduzida logo na primeira cena em meio a objetos como algemas e chicotes, provoca um desconforto inicial perceptível na plateia. No entanto, o espetáculo habilmente dissolve essa inquietação, conduzindo-nos por um percurso em que o corpo se desnaturaliza enquanto tabu e se reconfigura enquanto presença.

A fronteira entre ator e personagem, entre representação e exposição, é continuamente tensionada. Quem está em cena: o intérprete ou sua persona cênica? Ao longo da obra, essa dualidade se esvai, e a nudez, antes um choque, se converte em matéria íntima, familiar. O desfecho coroa essa desconstrução: o elenco permanece nu entre o público, anulando o limite entre palco e plateia, entre observador e observado.

O espetáculo provoca, sobretudo, uma pergunta essencial: por que a nudez ainda perturba? Por que a presença do corpo em sua verdade plena continua a ser um problema? “Querida Serpente” não responde, mas expõe. E, ao expor, rompe.

A iluminação e a sonoplastia dançam com o elenco, emprestando um tom sagaz às provocações cênicas. Pequenas digressões remetem a programas televisivos como o Mais Você, à mercantilização do corpo na era digital, a performances que transitam entre o riso e a inquietação. O humor é uma ferramenta, mas jamais um alívio: ele desnuda, tensiona, ressignifica.

Talvez o momento mais emblemático seja a chegada da maçã. Um a um, todos mordem. A fruta passa de mão em mão, cruzando também a plateia, em um gesto que resignifica a ideia do pecado. Afinal, não somos sagrados. Não fomos feitos para a pureza. O humano, por essência, transgride. O céu pode ser sagrado, mas nós não o habitamos.

“Querida Serpente” encerra sua jornada sem artifícios. A única certeza que nos resta é aquela que reverbera desde a primeira cena: um corpo é apenas um corpo.

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