Mads Mikkelsen brilha novamente

Apesar de Mads Mikkelsen ser o melhor cartão de visitas para falar desse filme, o bom ator é apenas a ponta do iceberg de uma produção dinamarquesa impecável. Nikolaj Arcel não dirigia um filme desde 2017 e só posso imaginar a quantidade de bons filmes que deixamos de assistir por causa desse hiato.

O Bastardo” é baseado no livro The Captain and Ann Barbara (O Capitão e Ann Barbara), escrito por Ida Jessen em 2020, que por sua vez foi inspirado na vida de Ludvig Kahlen, filho “ilegítimo” da nobreza dinamarquesa e que viveu nos anos 1700.

Depois de servir ao exército por 25 anos e atingir apenas o posto de capitão (que alguém da nobreza conseguiria em seis meses), Ludvig se reforma e obtém o direito de cultivar a inóspita região da Jutlândia, conhecida pelo mau tempo e pela baixa qualidade do solo, que o torna quase estéril.

O que seria uma luta contra as forças da natureza se torna também uma guerra entre Ludvig e De Schinkel, homem de família nobre que tem a posse da maioria das terras da região e não aceita a presença do capitão reformado.

Um velho-oeste na superfície

A disputa de poder entre dois homens, geralmente motivada por vingança ou posse de terras onde a lei não vale muita coisa, é um tema amplamente explorado pelos filmes americanos de velho-oeste (que, por sua vez, bebem na fonte dos filmes japoneses de samurai).

À primeira vista, “O Bastardo” se trata exatamente disso: uma luta de falos. De Schinkel manda e desmanda na região, onde é conhecido pela brutalidade com que trata seus empregados. Ludvig é um homem que passou 25 anos no exército e não foge de uma boa briga. Dois machos alfa dispostos a fazer sua justiça prevalecer através da única lei que funciona naquele lugar: a lei do mais forte.

 

Uma poesia no interior

É impressionante como o trabalho de fotografia conversa com a atuação de Mikkelsen nesse filme. O ator é brilhante ao sentir como o personagem, suprimir essa emoção, mas também deixá-la escapar na medida certa, nos momentos em que até o mais seco dos homens deixaria. Enquanto isso, a fotografia mostra exatamente os sentimentos escondidos pelo ator, fazendo uso do jogo de luz e sombra e da paleta de cores, ora fria, azulada, ora quente, amarelada.

O filme começa com Ludvig envolto nas trevas e, na medida que sua vida ganha luz, através dos laços que o personagem desenvolve com algumas pessoas ao seu redor, os cenários também se iluminam e ganham novas cores, assim como as próprias atitudes do protagonista, que lentamente passam da agressividade para o amor.

A luta entre dois homens é, na verdade, a luta de um homem pobre contra seu destino. Ludvig simboliza todas as pessoas que não tiveram a sorte de nascer em berço de ouro e precisam lutar por sua existência. Tanto a natureza selvagem quanto De Schinkel, que tentam impedir Ludvig de cultivar suas terras, representam as barreiras que um cidadão comum precisa enfrentar se quiser ascender socialmente.

O Bastardo / Reprodução

Como o filme retrata na presença – e na ausência – do padre que acompanha Ludvig na maior parte do tempo, é preciso ter muita fé para vencer essa batalha (não necessariamente em algo superior, mas em si mesmo acima de tudo).

Há também uma simbologia importante naquilo que Ludvig escolhe plantar. Sem dar spoilers, posso afirmar que o vegetal retrata o espírito resiliente do protagonista e manda uma mensagem positiva para todos nós.

 

Tem lugar para todos

Estamos falando de um filme europeu cujo protagonista é um homem branco que se envolve em uma disputa machista com outro homem branco em meados do século XVIII. Ainda assim, as mulheres têm um papel fundamental na história (entre elas uma cigana, povo que sofreu e ainda sofre bastante racismo). 

Lado a lado com o protagonista, as mulheres constroem seu lugar sem desconstruir o lugar dos homens. Ann Barbara, a governanta brutalizada por De Schinkel, é dona de seu destino, assim como a garota Anmai Mus. Ambas acolhem Ludvig e não o contrário; dão suporte sem o qual Ludvig provavelmente morreria; escolhem seu destino sem a “permissão” dele. Como deve ser.

 

Epílogo…

…é algo que geralmente traz mais coisas ruins do que boas para um filme, como deixá-lo mais longo do que deveria ou subestimar a capacidade do público com explicações desnecessárias. Este não é o caso. Ao voltar para o statu quo, onde a maioria dos filmes acaba (e com razão), “O Bastardo” pede mais tempo ao público para passar uma última mensagem, talvez a mais importante: não há conquista maior na vida de alguém do que a sua família.

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