Em uma era de vínculos líquidos, Amor à Segunda Vista ergue-se como fôlego vital nas profundezas do afeto

Quando foi a última vez que você se apaixonou? Ou, ainda, quando contemplou um amigo ou amiga e percebeu, em silêncio, a intensidade de seu amor? No século XXI, permanece um desafio hercúleo estabelecer laços afetivos verdadeiramente perenes, que transcendam a lógica do dar e do ceder, tão marcada pela instabilidade social.
Nas últimas décadas, sobretudo em um mundo pós-pandêmico, a superficialidade tornou-se regra. As mensagens são escassas, trocadas apenas quando há tempo; os encontros rareiam, limitados por crises emocionais ou pelo saldo do cartão estourado. O tempo avança, semanas se transformam em meses, meses em anos, e aquela amizade de infância — que se prometia eterna — já não recebe notícias há meia década. Seria isso natural ou apenas naturalizado?
De fato, construir uma relação, seja ela de amizade ou amorosa, constitui hoje tarefa árdua. Tudo se converte em diagnósticos de TDAH, Borderline ou Burnout. E não se trata aqui de menosprezar tais condições, mas de reconhecer que, à medida que a ciência avança, parece-nos que a essência humana se resume a um CID.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, ao propor o conceito de “amor líquido”, foi amplamente contestado, sobretudo por aqueles que não compreenderam sua profundidade. Para ele, as relações, assim como a água, tornaram-se destituídas de forma e de concretude: flexíveis, moldáveis e efêmeras. Os vínculos atuais reduzem-se a uma sucessão de “finais rápidos e indolores”, sustentados pelo temor da perda da liberdade e pela busca incessante por alternativas supostamente melhores, num vasto mercado de parceiros fomentado por redes sociais e aplicativos. Um simples unfollow basta para encerrar uma convivência.
Bauman alerta ainda que a solidão contemporânea nasce dessa corrida pelo prazer imediato e da fuga do sofrimento. Paradoxalmente, os mais conectados ao universo digital são, muitas vezes, os mais solitários no mundo real.

Já a socióloga franco-israelense Eva Illouz dedica sua crítica à forma como o capitalismo penetrou e remodelou o campo das emoções. Em suas análises, evidencia como a felicidade foi convertida em mercadoria e como os relacionamentos passaram a obedecer à lógica mercadológica.

É nesse cenário que Teodora e Enzo, personagens de Laritza Oliveira, ao se conhecerem em uma festa do ensino médio e firmarem ali uma amizade de confidências eternas, realizam um gesto quase heroico. Em meio a tantos destroços humanos, constroem não apenas amizade, mas verdadeira comunhão de existências.
Em “Os Instrumentos Mortais”, tais vínculos seriam chamados de Parabatai; na vida, chamamos simplesmente de amizade — ainda que a banalizemos sem perceber sua força transformadora. Naturalmente, em se tratando de romance, Oliveira não poderia se deter apenas nesse território; mergulha, então, no inevitável: a fronteira tênue em que amizade se transmuta em paixão.

Aqui se encontra o diferencial do amor. Ele habita simultaneamente dois campos, como uma elipse: a amizade profunda, da qual Bauman tanto lamenta a ausência, e a paixão, esse impulso que sociólogos e filósofos desejam reencontrar na essência humana.
Em “Amor à Segunda Vista”, Teodora e Enzo vivenciam uma amizade gravitacional, densa como um buraco negro, onde amizade e paixão travam uma batalha intensa, sem garantias de sobrevivência. Quando a paixão irrompe e o beijo sucede, a amizade inevitavelmente se fragiliza. Surge, então, o dilema apontado por Byung-Chul Han: os protagonistas tentam pintar a amizade como uma tela em branco, ainda que a paixão, temperamental e exigente, se imponha.

Han critica a tirania da positividade, esse imperativo de felicidade e sucesso contínuos que nos afasta da alteridade e nos empurra para relações rasas, pautadas pela otimização e pela autorrealização. A paixão, aqui, encarna essa entidade insaciável que se alimenta de atenção, carinho e submissão. À medida que se intensifica, enrola-se sobre os protagonistas como serpente que sufoca sua presa.

Contudo, quando um fator externo rompe esse encantamento quase lúdico, Enzo e Teodora são forçados a retornar ao ponto inicial, a enfrentar novamente a arena em que amizade e paixão duelam. Cada capítulo assemelha-se a um espetáculo no Coliseu, no qual o leitor ocupa a arquibancada, acompanhando um combate cada vez mais visceral. A torcida, inevitavelmente, inclina-se pela vitória da paixão, pois a amizade já se metamorfoseou em algo novo, tão poderoso quanto o nascimento de uma supernova.

No entanto, a realidade biológica e social — tão implacável quanto qualquer catástrofe cósmica — impõe-se. E chega o ponto final. Mas resta a questão: quando o amor, nutrido e amadurecido, admite a derrota diante da paixão?

“Amor à Segunda Vista” é ficção, sim, mas está longe de ser mero clichê. O cinema já explorou inúmeras vezes a narrativa de amigos que se apaixonam, mas Laritza Oliveira transcende o lugar-comum. Seu texto é um oceano de sentimentos autênticos, onde vida e ficção se confundem em linhas quase imperceptíveis. As lágrimas que o leitor derrama não são o maior desafio; a verdadeira dificuldade é lidar com o vazio existencial que se instala ao virar a última página.

Não se trata de uma obra a ser lida de modo superficial ou em qualquer circunstância. É uma narrativa de fôlego, que provoca reflexões tão intensas que até mesmo um terapeuta poderia hesitar em conceder alta a seu paciente após a leitura. Oliveira demonstra, com rara maestria, que criar personagens não exige fórmulas importadas, mas sim autenticidade. Cenas marcantes, como ela evidencia, requerem tempo e maturação — já não bastam os arquétipos de Bella e Edward ou de Christian Grey e Anastasia. Não quando temos Teodora e Enzo.

Ainda que parta de uma premissa aparentemente clichê, “Amor à Segunda Vista” ressignifica-a sob uma perspectiva profundamente brasileira, conduzindo-nos a enfrentar aquilo que julgávamos já conhecer. Como lembram Bauman, Illouz e Han, o oceano do amor e das emoções humanas ainda está longe de ser plenamente explorado. Que mais autoras como Laritza Oliveira estejam a criar novas Teodoras e Enzos, para que no futuro não sejamos reféns de best-sellers superficiais, enquanto obras densas e necessárias permanecem empoeiradas nas estantes. Caso contrário, restará apenas desejar que o fim dos tempos chegue mais cedo.

Leia ‘Amor à Segunda Vista’ aqui.

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