O Folhetim Cultural me incumbiu da grata satisfação de conversar com a escritora, Milena Martins Moura. Além de falarmos sobre sua nova obra, também conversamos sobre seus múltiplos talentos nas artes. Milena tem mestrado em Literatura Brasileira, fez onze anos de canto lírico, foi vocalista e letrista de três bandas.
Foi um belo bate papo, além de talentosa, Milena é de uma simpatia, simplicidade e complexidade ímpar. Confira agora a entrevista na íntegra:
RB- Milena, você é poeta, escritora, tradutora, pesquisadora, editora, cantora, compositora. Você é uma artista completa?
MMM- É uma história mais ou menos longa. Eu tive um avô leitor e uma tia professora que me alfabetizou desde muito cedo, então comecei a ler desde muito cedo. Então, eu acho que escrever foi uma consequência, mas o primeiro grande sonho da minha vida foi ser astrônoma, risos, mas havia toda uma questão de uma família tradicional e enfim, não era coisa de menina e então me voltei para as artes, não sei, até como uma forma de lidar com algumas perdas, com alguns lutos, nesse processo todo de se enquadrar como uma mulher, numa sociedade e dentro de um seio familiar que vê de uma forma secundarizada a existência da gente. Eu já quis ser muita coisa na minha vida, estava comentado isso recentemente com minha orientadora, Tatiana Pequeno, que eu quis ser muita coisa. Eu fiz curso de sommelier, fiz onze anos de canto lírico porque queria me profissionalizar como cantora de ópera, eu toco baixo, risos, eu fiz muitas coisas na minha vida, mas chega uma certa hora na vida que “a vida cobra”, “the life snake” ela brinca, as vezes a gente precisa escolher um caminho específico, pois vivemos numa sociedade especialista, a gente tem uma sociedade do especialismo, o Millôr dizia que, “o especialista é aquele que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até saber tudo sobre nada”, a gente precisa fazer uma coisa muito bem ou as vezes nem tão bem assim, medianamente, mas se dedicar especificamente àquilo, porque a gente tem uma sociedade que vê a pessoa que é multipotencial que faz bem muitas coisas, como alguém que é um sonhador, como alguém que não acordou pra vida, então acabei fixando na literatura, porque eu acho que isso eu faço muito bem.
RB- Você disse que teve que lidar com perdas e você escreveu seu segundo livro de poesias dedicado ao seu avô, certo?
MMM- Sim, o livro, “Oráculo dos meus óculos” é um livro que perpassa ali aquele período de doença, convalescença, morte e luto pela perda do meu avô. E é um livro inteiro de luto, quase um livro inteiro de luto, tem alguns poucos poemas que não fala disso. E é curioso como no “Cordeiro” eu tenho um poema específico chamado “Daniel”, que era o nome do meu avô. Acho que a distância temporal ajuda a observar de uma forma diferente, enquanto os poemas do “Oráculo dos meus óculos” eram poemas profundamente dolorosos, o “Daniel” que está no “Cordeiro”, é um outro Daniel. É o Daniel da família, ele deixou de ser a pessoa que deixou de existir, e passou a ser a lembrança que existia. Então tem uma diferença temporal.
RB- O seu primeiro livro, foi um livro de contos; no segundo você teve que racionalizar seu luto; no terceiro, você fez um livro de poemas enclausurada, devido ao isolamento. Nesse seu novo livro de poesia, qual a força motriz, qual sentimento te impulsionou?
MMM- É curioso como no meu terceiro livro, “Orquestra dos inocentes condenados”, que é um livro sobre isolamento social, mais que isso, é o impacto do isolamento social em um sujeito neurodivergente, em especial no sujeito autista, com espectro autista. Engraçado como foi automático, assim que eu terminei de escrever a “Orquestra”, eu fechei e enviei o livro, e comecei a trabalhar na edição dele, é coo se eu tivesse mudado completamente minha escrita, até porque a “Orquestra” foi um ponto fora da curva. Eu escrevo muito devagar e escrevo de uma forma não pensada. A “Orquestra” não foi assim, foram poemas para não entrar em crise, poemas desesperados até e que saíram de uma vez só. Eu trabalho horas e dias em um poema, mas quando termino eu não volto nele de jeito nenhum, nem pra ler. O “Cordeiro” é uma “anti” “Orquestra” no sentido que eu voltei a escrever mais lentamente, escrever cuidadosamente, e também é uma “anti” “Orquestra” porque eu não compro essa ideia de que o sujeito que faz parte de um grupo minorizado tenha que falar necessariamente sobre sua condição de grupo minorizado e suas mazelas. Então, não acho que o sujeito neurodivergente, tenha que falar exclusivamente sobre seu transtorno. Isso é muito limitante, e é uma demanda que acaba sendo criada. Por exemplo, eu, nas redes sociais, falava muito sobre autismo, parei de falar sobre autismo, porque parecia que tinha sempre essa implicação, “por que você está postando a foto do seu gato e não está produzindo conteúdo sobre o autismo? E aí eu quis escrever um livro que fugisse desse tema, pois essa é uma parte da minha vida que impacta as outras, mas não é a única parte da minha vida. Eu sou uma mulher adulta, eu sou casada, tenho doutorado, assim, essa é uma parte da minha vida, embora seja uma parte muito importante. E tem uma grande questão no “Cordeiro”, que é o fato de eu ser mulher numa sociedade misógina. E ser fruto de um seio familiar muito tradicional, muito católico, muito religioso. E o “Cordeiro” fala sobre isso, é um livro que fala sobre mulheres, é um livro que fala sobre sacralização, é um livro que fala de putaria, risos, e é um livro que busca tirar essas figuras femininas que estão tão presentes na mitologia, e que são arquetípicas daquilo que você deve ser e daquilo que você não deve ser. “Não seja Eva porque ela danou a humanidade para sempre e a gente não está numa terra que corre leite e mel porque Eva mordeu a maçã, seja Maria que foi meramente utilitária, que pariu sem gozar, que teve suas funções reprodutivas exploradas”. Então, a gente tem figuras arquetípicas em todas as mitologias, ensinando para as mulheres o que ela deve ser ou não. E minha intenção no “Cordeiro” é justamente essa, é de tirar isso de um patamar de sacralidade, trazer para um patamar humano e revisitar essas histórias com um outro olhar. Então, é uma “anti” “Orquestra” em todos os sentidos.
RB- Milena você disse que o autismo impacta em outros aspectos de sua vida, como é isso?
MMM- Ele, o autismo, impacta em absolutamente tudo, porque meu cérebro funciona de uma forma diferente. Minha socialização e minha comunicação são diferentes. Minha forma de perceber o mundo é diferente. Há muitas falácias sobre o autismo. Uns dizem que não tenho cara de autista, outros dizem que não sou autista porque eu falo, etc. “Porque o filho do amigo do vizinho, o rapaz que anda com meu cachorro é autista e não igual a você”. O autismo é uma condição de espectro, e o espectro se manifesta de uma maneira diferente em cada indivíduo, então, cada autista é único e diferente. E está na moda dizer o que é autismo, isso enche o saco. Na verdade, isso acontece porque existem muito mais estudos. A gente sempre existiu, eu nasci em 1986, eu sempre fui autista, se isso está sendo descoberto e está sendo vsto agora, é porque existem mais estudos, é porque existe mais conhecimento. Então, assim, é difícil ter que
“hablar” pras pessoas exatamente como é o espectro e ainda ter que concorrer com psiquiatras e psicanalistas na internet, e o Pondè falando besteira na Folha, enfim, e todas essas coisas. O fato é que eu sou uma pessoa normal, só que o meu normal é diferente. E quem foi que ditou, que não olhar nos olhos é rude? Quem foi que ditou que perguntar se é isso mesmo, você está entendendo certo, é rude? Quem foi que ditou, que é uma falha de comunicação não entender duplo sentido, sarcasmo, ironia, flerte? Quando na verdade eu falo diretamente aquilo que eu quero dizer, enquanto a neurotipia fala meias palavras e espera que eu entenda. A falha na comunicação não está em mim, risos. Então, tem toda uma questão de neuro normatividade, existe um padrão que é considerado normal e o restante é patologizado. Nas cabeças das pessoas, sou normal de mais para ser autista e esquisita demais para ser normal, risos. Na verdade, vivemos num mundo que não é feito pra gente. É um mundo que não tem acessibilidade. Uma das grandes falácias sobre o autismo é que a gente busca o isolamento, na verdade a gente é isolado desde muito cedo e a gente aprende a ser sozinho, pelo medo da dor da rejeição. É bom que todo mundo que seja autista saiba, pois é libertador.
RB- Milena, você fez onze anos de canto lírico, fez parte de três bandas, agora está lançando um livro, existe uma arte que você se identifica mais?
MMM- A primeira arte a qual me dediquei foi a música, mas vamos a isso, “a escrita é custo zero”, quem fala isso é o Bráulio Tavares, e ele tem muita razão. Para fazer um filme você precisa de muito aparato, cenário, elenco, e de muita grana. Na escrita você precisa de lápis e papel, é isso. Então, é mais fácil escrever um livro, eu digo financeiramente falando, do que gravar um Cd, fazer um você. Escrever só precisa de você sozinho no seu canto, com a sua caneta e o seu papel. Eu não tenho mais tempo para ter uma banda, me dedicar à música, mas ainda toco o meu baixo. Nada disso desapareceu da minha vida, só ganhou um patamar de Hobby.
RB- Você tem algum processo de escrita, ou você escreve quando está inspirada, como é isso?
MMM- Há momentos no dia que eu gosto de escrever, eu adoro escrever de manhã, porque de manhã ainda está silencioso, ainda não tem muito barulho, mas nem sempre dá. As vezes tenho compromissos, as vezes tenho estudo ou algum trabalho, por isso nem sempre dá. Eu já tive diversas ideias que morreram antes de eu chegar em um caderno e anotar, porque estava no meio de um trabalho, no trânsito, etc. eu acho isso tudo é normal, mas ao mesmo tempo o ritmo acelerado da vida da gente tem matado nossas melhores sinfonias. Acho que o modus operandi da nossa sociedade impede o florescimento de muitas boas ideias. A “Orquestra” é um livro que nasceu num período específico e terminou em um período específico e tem um fio condutor. Talvez isso não seja raciocinado, talvez seja instintivo, porque eu estava passando naquele momento um processo específico que me fez escrever daquela forma, com uma determinada linguagem e num determinado tempo e o “Cordeiro” é a mesma coisa. Eu comecei um próximo livro que tem uma linguagem completamente diferente do “Cordeiro”, comecei agora, quando vai terminar? Ainda não sei, só sei que a linguagem mudou.
RB- É de poesia também?
MMM- Sim, é de poesia também, embora o próximo livro, que vai sair ano que vem, é um romance. Da mesma forma quando terminei a “Orquestra”, aquela linguagem mais rápida, mais desesperada, mudou para algo cuidadoso e até mesmo religioso no “Cordeiro”. E agora que terminei e publiquei o “Cordeiro” e estou escrevendo outra coisa, meu discurso está mais irreverente, já é uma linguagem diferente. Então existe esse processo na escrita de um livro, esse processo não vai se replicar todos os dias porque cada dia é diferente, e “infelizmente”, pra uma pessoa autista todos os dias são diferentes, seguir uma rotina não é uma realidade possível muitas vezes. Nesse período específico de escrita existe esse processo, não sei se racional, do emprego de uma linguagem “x”, de uma temática “x” que pertence àquele livro. E eventualmente no momento que estou no processo criativo de um livro, posso escrever algo diferente, mas que não vai entrar naquele livro, vai entrar em outro momento, isso aconteceu com a “Orquestra”, eu escrevi muita coisa que está aqui, no livro “Cordeiro”.
RB- Você tem é mestre em literatura brasileira, você tem um autor preferido? Quais são suas referências?
MMM- Eu leio muita coisa, e muita coisa distinta. O meu mestrado foi sobre Caio Fernando Abreu e sou completamente apaixonada pela literatura dele. Não estou falando do Caio Fernando Abreu que as pessoas conhecem do Facebook, risos, tem muitas citações que estão ali que não são dele, risos. Amo Carl Sagan, sou apaixonada por astronomia, tenho vários livros dele. E hoje leio muita literatura escrita por mulheres, poderia citar muitas autoras, mas várias são minhas amigas, por isso prefiro não citar nenhuma, risos. Hoje me voltei especialmente para poesia escrita por mulheres, especialmente erotismo, que é o tema da minha pesquisa de doutorado, que é algo que gosto de ler mesmo. E eu prefiro uma voz feminina, eu prefiro a erótica escrita por mulheres. Então, acho que é isso, eu não posso citar autores preferidos ou livros preferidos, eu posso citar tema preferido. Eu amo poesia.
RB- E no livro, “O Cordeiro e os pecados dividindo o pão”, você diz que quer dessacralizar o sagrado, como é isso?
MMM- Eu sempre digo que “Cordeiro” não é um livro erótico, mas é um livro que perpassa isso. Eu não acredito em poesia erótica ou poetas eróticos, o erotismo é um tema que perpassa a poesia, mas não precisa ser o todo. A grande questão do livro é Eva. Logo no primeiro poema do “Cordeiro” e em outros também, eu falo dela. Falo desse arquétipo da mulher que por ser insubmissa, se ferra, e não ferra só a si mesma, ela acaba danando com toda humanidade pra sempre. E na Bíblia tem outras figuras como, a mulher de Jó, a mulher de Ló, mas Eva é a iniciadora desse arquétipo de como a mulher não deve ser. A mulher é colocada sempre no local da tentação, do erro, do pecado, do sujo. E o livro passa pela desconstrução desses mitos. Pois esses mitos são iniciadores de uma tradição social. O livro é muito sobre isso. E é impossível falar sobre o corpo feminino sem falar sobre desejo, sem falar de gozo, fluição e do direito da mulher a isso, sem culpa. Antigamente era permitido à mulher ter um único desejo, o de satisfazer o seu parceiro, não lhe era dada voz. A mulher era o objeto silencioso do desejo masculino. Há um poema da Glória Perez que é maravilhoso que diz assim, “Aprendi com mamãe que nunca teve queixa, mulher perdida goza, mulher direita deixa.” Quebrar essa figura arquetípica que coloca a mulher como objeto, é um dever.