Em 2025, o leque de temporadas de espetáculos teatrais que passaram por Curitiba surpreendeu e superou muitas expectativas. Quando se acredita que as vivências já poderiam ter sido encerradas e que se entraria em um hiato, a Cia UFPR trouxe aos holofotes o último espetáculo da trilogia “Pertencimento”, a “Artéria Rara” no último dia 28 de novembro no Teatro da Reitoria.
Inicialmente, um pós-dramático pesado e carregado de complexidades dramatúrgicas se apresenta diante de nossas retinas, conforme a fisicalidade que um bom teatro físico possui se emerge. É claro, belíssimo de se ver em cena, mas preocupante na questão de compreensão. E aí, que se encontra a grande virada.
Conforme as narrativas são costuradas, o pós-dramático indecifrável que encenadores adoram evidenciar no teatro vai se metamorfoseando com tal excelência que tudo se torna claro como água. É impossível sair sem compreender a complexidade que tais histórias transportam.
Em conversa com o diretor e dramaturgo do espetáculo, Rafael Lorran, foi possível compreender tais escolhas narrativas, os motivos essenciais que transformaram um espetáculo que tinha tudo para ser mais um enigma em um mergulho intenso e sublime delicadamente necessário para trazer a vida um olhar tão poético e poderoso.
É emblemático ter um elenco tão diverso em cena e ao mesmo tempo tão grande. Apoteótico para dizer o mínimo que uma cia independente consiga dar espaço e holofote em tal harmonia para que não exista uma estrela e sim uma constelação inteira brilhando em um firmamento cênico tão potente que arranca a atenção do público. É uma viagem cósmica e terrena em igual forma que 90 minutos se passam sem serem percebidos.
No quesito iluminação, a dança dos holofotes nos faz entender cada momento como único, deletando qualquer interferência do mundo externo e transformando o silêncio da plateia atônita em um oceano de histórias que jamais serão exploradas. Juliane Rosa faz de sua construção uma poesia de cores.
A direção musical sob o comando de Nelson Sebastião e Leonardo Gumiero transforma as poesias dramatúrgicas em solos que somente a música é capaz de proporcionar. Um arrepio que vem da alma e ganha força a cada nota, seja ela ao vivo ou computadorizada. Vale destaque também para a sonoplastia produzida pelos próprios corpos cênicos através de objetos de cena que ganham vida a cada gesto e movimento. Trata-se de uma efervescência teatral que há muito foi perdida em muitas produções que apenas se sentem confortáveis com um play.
Já no figurino com consultoria de Patrícia Cipriano traz uma dramaticidade tão forte que apenas a existência dele no corpo do ator é revolucionária. Cada cor, tonalidade, paleta e elemento parece ter sido milimetricamente calculado para gerar um impacto colossal ao ser assistido diante de um ecossistema cênico como tal.
Na preparação vocal e corporal, conduzidas respectivamente por Manu Santos e Priscilla Pontes, mora um legado da arte curitibana que reverbera pelos milênios à frente, independente de qualquer futuro. É uma raiz sendo firmada em uma terra tão conservadora que gestuais fora do comum rompem com a bolha fina da decência e se transfaz em uma alegoria de uma vida pulsante na pele de quem vê. A cada nota alta, um grito da arte que não súplica, mas fortalece, como um animal que protege seu território.
A encenação física de tais corpos traz um ritual dionisiaco tão poderoso que se pode jurar sentir a presença do próprio olimpiano em uma célebre conquista de uma parcela da história que até pouco tempo tentou ser esquecida, apagada e massacrada. Ainda, se destaca, a existência de tais artistas em cena, que não mostram suas fragilidades torcendo por uma condolência que já se sabe não ser verdadeira, mas reafirma um lugar de existência imortal e reverencial.
Com um elenco com interpretações tão viscerais e transformadoras, mesmo que no futuro diabólico orquestrado por aqueles que acreditam salvar a humanidade ao conservar o “inconservavel”, será impossível esconder um brilho tão forte. Afinal, um ritual teatral que se une ao próprio sangue olimpiano não é capaz de ser ofuscado.
Rafael Lorran não apenas comprova e firma sua fortaleza cênica e dramatúrgica ao fechar uma trilogia humana tão complexa, como – sem receio – transforma um gesto mínimo em um efeito dominó sem precedentes que o destino final não pode ser outro: quase cinco minutos de aplausos ininterruptos.
Nas palavras do próprio encenador, seu trabalho é justamente criar zonas de atravessamento. Contudo, o que se firma em “Artéria Rara” é muito mais do que isso. É a solidificação daquilo que antes apenas perpassava. É a criação de uma raíz fortalecida ao longo de 3 espetáculos.
A Cia UFPR traz uma patente da arte que poucos lugares encontram. A balança entre o visualmente bonito e o visualmente necessário não se rompe em nenhum momento, mesmo conforme o pop emerge e a quarta parede é afundada. É raro em tempos de tantas performances meramentes existências, encontrar uma celebração à vida, aos deuses, a natureza e sobretudo, a diversidade, mesmo que diante de um exército de demônios criados especialmente para derrubar quem ali pisa de tal forma.
Por diversos momentos, o arrepio é inevitável com tais escolhas históricas a serem trazidas à tona. O conjunto cênico se torna um grito tão alto da arte que rompe com todas as artérias terrenas e eleva o nível espiritual em uma procissão infindável ao cósmico. Um cortejo impensável e que precisa ser sentido, não apenas visto. Território, família e cultivo celebram uma vida que não pode ser apenas mais um numeral, mas sim uma existência histórica e imortal.
Ao blackout, o que se resta é a certeza de que uma arte tão cósmica e xamanica corre nas entranhas da geleira conservadora de Curitiba como um fogo ardente que tomará cada centímetro para implodir de forma irrevogável qualquer mera tentativa de manter uma realeza que não seja os próprios Caboclos. Quando uma flecha como essa é lançada, não há província capaz de se manter na história, porque “ela [a arte] cria aquilo que precisa existir”.
