O documentário Apocalipse nos Trópicos, que entrou no catálogo da Netflix nesta segunda-feira (14), é mais uma produção brasileira a conquistar relevância internacional. Exibido no Festival de Veneza de 2024, o filme dirigido por Petra Costa expõe com firmeza o crescimento da influência religiosa, especialmente evangélica, sobre a política nacional.
Ao acompanhar figuras centrais como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o pastor Silas Malafaia, a produção reconstrói os bastidores do poder desde antes das eleições de 2022. A proposta vai além do registro documental e mergulha no que há de mais simbólico e inquietante nas conexões entre fé, discurso apocalíptico e governança.
Petra Costa apresenta uma narrativa que alia estética apurada a uma análise crítica do país. O documentário escancara a crescente participação de líderes religiosos na vida pública brasileira, com foco no uso da Bíblia como justificativa para decisões políticas e estratégias de manipulação popular. Pastores e parlamentares, munidos de versículos e profecias sobre o fim do mundo, unem-se em torno de um projeto de poder que ultrapassa os limites do Estado laico.
A obra contrapõe dois retratos do Brasil: de um lado, a população que carrega a bandeira vermelha, símbolo de resistência e esperança por direitos e justiça social. Do outro, o uso da bandeira nacional para fins antidemocráticos, como se viu nos ataques de 8 de janeiro, quando símbolos da pátria foram apropriados por movimentos extremistas.
É impossível não perceber, nos discursos e nos olhos de líderes religiosos retratados, o desprezo pela parcela da população que se opõe às suas convicções. O tom é de ataque e de superioridade. Muitos se orgulham do avanço da bancada evangélica no Congresso, uma conquista que, embora legal, afronta o princípio da separação entre Igreja e Estado, estabelecido pela Constituição.
A crítica se torna ainda mais contundente ao lembrar que, mesmo nas escrituras que fundamentam essas lideranças, há claras advertências contra o orgulho e a arrogância. A Bíblia evangélica condena o ato de se gabar, considerando-o vaidade. Já no Salmo 75 da Bíblia católica, lê-se: “Eu digo aos arrogantes: Não sejam arrogantes. E aos injustos: Não levantem a fronte.”
O documentário aponta também para um dado revelador: o número de evangélicos no Brasil cresceu 35% nos últimos 40 anos. Petra classifica essa transformação como uma das mudanças religiosas mais rápidas da história da humanidade. Com Silas Malafaia como um dos principais protagonistas, a cineasta examina como o movimento evangélico se organizou durante o governo Bolsonaro e como Lula tenta estabelecer diálogo com a comunidade.
Apocalipse nos Trópicos é necessário e incômodo. Longe de ser apenas uma denúncia, é também um alerta. A obra mostra, com clareza e coragem, que a política brasileira está sendo atravessada por forças que reivindicam o sagrado enquanto pisoteiam a democracia. Um retrato duro, mas essencial para entender os rumos de um país em disputa.
