Em um país de dimensões continentais como o Brasil, não há uma única realidade. Há várias. Vários Brasis que coexistem, mas raramente se encontram. “A Melhor Mãe do Mundo”, novo longa da diretora Anna Muylaert, é um retrato contundente de um desses ‘Brasis’ que quase nunca ganham visibilidade, exceto pelas manchetes cruas dos jornais. Ao lado de Grace Passô e Mariana Jaspe, Muylaert assina um roteiro sensível, corajoso e esteticamente potente, capaz de escancarar, sem perder a ternura, as cicatrizes da violência doméstica, da negligência institucional e da desigualdade estrutural.
A história acompanha Gal, vivida por Shirley Cruz, uma catadora de recicláveis que vive com os dois filhos pequenos e um marido abusivo, interpretado com dureza silenciosa por Seu Jorge. Após uma agressão, Gal decide fugir, sem recursos, sem apoio e com a sensação de que ninguém, nem a polícia, irá protegê-la. Ela embarca em uma jornada pela cidade de São Paulo, transformando a fuga em uma aventura para proteger as crianças não apenas da violência concreta, mas da compreensão da realidade que os assola.
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Esse uso da fantasia como escudo emocional é um dos pontos mais inteligentes do roteiro. Gal não apenas foge: ela cria para os filhos uma narrativa paralela, onde estão participando de uma aventura, de algo divertido. Essa dissonância entre o horror vivido e o mundo inventado é o que faz com que o longa seja tão eficaz. Ele não é apenas um retrato da miséria ou da dor: é uma declaração de amor ao ato de resistir, ao poder da mãe que, mesmo espancada, mesmo com sequelas físicas visíveis, encontra energia para sorrir, contar histórias e manter seus filhos vivos de corpo e alma.
A atuação de Shirley Cruz é, sem exageros, impecável. Ela representa uma mulher violentada, com marcas em seu corpo, expressão que denuncia a dor crônica, a insegurança constante, e o medo em estado bruto. Em muitos momentos, sua interpretação lembra sintomas reais de trauma craniano, como fala arrastada, olhar perdido, e desorientação mental. É uma entrega física e emocional. Atuação que que muito se deve à preparação da atriz, que passou semanas acompanhando catadoras reais, ouvindo suas histórias e convivendo com a dura rotina da reciclagem urbana.
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Essa preocupação com a representatividade verdadeira também se estende ao elenco infantil. As crianças Rihanna Barbosa e Benin Ayo interpretam personagens com seus próprios nomes, em uma escolha da direção que valoriza sua identidade e naturalidade. As atuações dos dois são espontâneas, doces, comoventes.
A fotografia de Lílis Soares é outro destaque: ora crua, ora quase onírica, ela consegue representar com igual intensidade os becos escuros de São Paulo e os pequenos momentos de beleza que Gal e seus filhos encontram no caos. A montagem de Fernando Stutz e a trilha sonora de André Abujamra e George Nahssen são complementos que sustentam o ritmo do filme com firmeza.
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O filme estreou mundialmente na 75ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2025, na seção Berlinale Special, e desde então tem sido celebrado em festivais ao redor do mundo. Em Guadalajara (México), conquistou os prêmios de Melhor Interpretação, Melhor Roteiro e Melhor Fotografia. Em Toulouse (França), recebeu o Prêmio Rail D’Oc, Prêmio Cine+ Festival e o Prêmio do Público. Também foi ovacionado no Festival de Cinema de Nice e no Festival de Cinema de San Francisco, nos Estados Unidos. No Brasil, foi o filme de abertura da 29ª edição do CINE-PE, e sua estreia nacional em circuito comercial está prevista para 7 de agosto.
Uma curiosidade desta produção é que paralelamente ao filme, a equipe também elaborou minidocumentários com histórias reais de catadoras de recicláveis. Esses curtas foram disponibilizados gratuitamente no YouTube como parte de uma ação de conscientização e formação de público. Esses registros trazem rostos, vozes e trajetórias que muitas vezes não caberiam em um longa de ficção, mas que reforçam a urgência do tema. Segundo dados do IPEA, cerca de 66,1% dos catadores no Brasil são pessoas negras, e mais de 75% são mulheres. Um retrato claro de como a exclusão social e o racismo estrutural se entrelaçam na base da cadeia econômica.
Outra dura realidade que “A Melhor Mãe do Mundo” mostra com maestria é como a violência pode ser herdada. Como, muitas vezes, ela se torna tão cotidiana que não é mais percebida como exceção, mas como parte da vida. Gal vive com um homem que a espanca na frente dos filhos, que os humilha, que impõe o medo como regra, mas ao relatar sua realidade é confrontada com “mas é assim mesmo”, “você também não via sua mãe sendo espancada”, “casamentos são difíceis, você tem que aceitar”.

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A atuação de Seu Jorge também merece destaque. Conhecido por sua presença carismática, o artista entrega aqui uma performance completamente oposta. Leandro é frio, controlador, ameaçador. Seu Jorge constrói um vilão que não precisa gritar para intimidar, sua presença basta. O desconforto que ele provoca é profundo, justamente porque contrapõe sua imagem pública com um personagem que representa tantos homens reais, silenciosos e violentos.
Ao final da projeção, é difícil não sentir orgulho. “A Melhor Mãe do Mundo” é uma prova da maturidade do cinema brasileiro, que cada vez mais se posiciona como agente de transformação social. Em vez de buscar clichês ou concessões ao mercado internacional, Muylaert e sua equipe escolheram contar uma história dura, mas profundamente necessária. Uma história sobre mães negras, pobres, invisíveis e absolutamente heroicas.
O longa nos lembra que ser a melhor mãe do mundo não é sobre ter dinheiro, estabilidade ou apoio. É sobre amar incondicionalmente, sobre proteger mesmo quando tudo está desmoronando, sobre mentir com ternura para que os filhos possam sonhar. Gal é isso: uma mulher subjugada por fora, mas que ainda acredita que seus filhos podem ser salvos.
E talvez seja esse o maior feito do filme: nos lembrar que, entre tantas realidades brasileiras, existe uma que insiste em sobreviver apenas pela força do afeto. E que o cinema, quando sensível e comprometido, é capaz de amplificar essa voz.
“A Melhor Mãe do Mundo” é, sim, uma ficção. Mas também é, em muitos aspectos, um documentário daquilo que preferimos não ver. Um retrato de um Brasil que existe, e que precisa ser visto.
Assista ao trailer:
