Em A Memória do Cheiro das Coisas, o diretor Antônio Ferreira, conhecido por obras como Pedro e Inês: O amor não descansa e A Bela América, retorna com um drama intimista e sensível, centrado nas fragilidades humanas e na passagem do tempo. O longa, que estreia nos cinemas em 30 de outubro, com distribuição da Sinny e da Muiraquitã Filmes, conquistou reconhecimento internacional, incluindo o prêmio de Melhor Ator no Festival de Xangai para José Martins, em uma performance arrebatadora.
Martins interpreta Sr. Armênio, um português ex-combatente da Guerra Colonial de Angola, viúvo e pai de dois filhos — João (Pedro Lamas) e Isabel (Isabel Craveiro). A relação familiar é marcada pela distância emocional: apenas o filho o visita, enquanto a filha permanece afastada, revelando feridas antigas e silêncios acumulados. A narrativa se constrói a partir dessa solidão, transformando o cotidiano do personagem em um espelho do envelhecimento, do arrependimento e da necessidade de reconciliação.
Ferreira conduz o filme com delicadeza e contenção, apostando em silêncios, planos longos e uma fotografia suave, quase poética, que traduz a lentidão dos dias de Armênio. A direção evita o melodrama fácil e confia na força do detalhe, o olhar perdido, o gesto repetido, o cigarro aceso como companhia. O vício, aliás, ganha papel simbólico: é tanto uma fuga quanto uma âncora emocional, lembrança dos tempos passados e marca de uma resistência teimosa à finitude.
Há ainda um olhar sutil sobre questões sociais que ampliam o escopo do filme. Um momento marcante surge quando o enfermeiro brasileiro que cuida de Armênio afirma ter deixado o Brasil por considerá-lo “a maior bandidagem”. Essa breve fala, embora lateral à trama, ecoa como uma crítica à desigualdade e à desesperança que atravessam fronteiras, evidenciando o contraste entre o desencanto individual e o coletivo.
O tema do racismo também aparece com discrição, sem desviar o foco da jornada íntima do protagonista. Ferreira insere o tema como pano de fundo das experiências coloniais e das tensões não resolvidas entre passado e presente, sem transformar o filme em um manifesto, mas mantendo a crítica latente, quase impregnada no ar, como o próprio “cheiro” do título sugere.

O clímax emocional chega com o pedido de perdão à filha, um gesto tardio, mas profundamente humano. A cena, sustentada pela interpretação contida de José Martins, sintetiza a força do filme: não é sobre grandes reviravoltas, mas sobre a reconciliação possível entre o homem e o tempo, entre a culpa e a ternura.
A Memória do Cheiro das Coisas é, acima de tudo, um filme sobre aceitação — da velhice, das falhas e da inevitabilidade da morte. Em sua simplicidade, encontra a grandeza. Ferreira transforma o cotidiano em poesia, e José Martins entrega uma atuação que fica na memória, como o perfume persistente das lembranças que não se apagam.
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