J.K. Rowling e a sombra de Voldemort

Texto de Opinião

Se há um personagem que simboliza o medo, o ódio e a negação do outro no universo literário, este é Lord Voldemort, o vilão cujo nome mal pode ser pronunciado na franquia de ‘Harry Potter’. Criado por J.K. Rowling como a personificação do mal absoluto, ele é descrito como uma figura incapaz de compaixão, movida apenas pela sede de poder e pela obsessão de impor uma identidade “pura” e superior.

No documentário ‘Um ano na vida de J.K. Rowling’ da GNT de 2007, por ocasião do lançamento de ‘Harry Potter e as Relíquias da Morte’, a própria autora afirmou que Voldemort representava o inumano, pois não havia justificativa racional para a violência que ele praticava. Contudo, anos depois, a trajetória da escritora parece ter se aproximado, de maneira preocupante, daquilo que ela mesma condenava em sua ficção.

London, UNITED KINGDOM: British author J.K. Rowling presents her novel “Harry Potter and the Deathly Hallows” which goes on sale at midnight 20 July 2007 at the National History museum in London. Worldwide anticipation and hype surround the publication of “Harry Potter and the Deathly Hallows,” the seventh and final book in author J.K. Rowling’s fantasy series. AFP PHOTO SHAUN CURRY (Photo credit should read SHAUN CURRY/AFP/Getty Images)

Com uma fortuna estimada em 1,2 bilhão de dólares pela Forbes, Rowling passou a sustentar publicamente discursos de caráter excludente e marcadamente conservador. Em junho de 2020, ela reagiu a um artigo que utilizava a expressão “pessoas que menstruam”, criticando o termo e sugerindo que ele apagaria a realidade da palavra “mulher” e do sexo biológico. A reação foi imediata: acusada de ignorar identidades trans, Rowling publicou um longo ensaio em seu site, onde defendia sua posição e expressava preocupações quanto à redefinição do termo “mulher”, abordando temas como a segurança de mulheres cis em espaços exclusivos e a possibilidade de arrependimento em processos de transição.

Desde então, suas manifestações se intensificaram. No X (antigo Twitter), afirmou que “se o sexo não é real, a realidade vivida pelas mulheres globalmente é apagada”. Em abril de 2024, já após a aprovação de uma lei contra crimes de ódio na Escócia, Rowling desafiou publicamente as autoridades ao descrever mulheres trans como homens, dizendo que “esperava ser presa” se isso fosse considerado ofensivo. Pouco depois, em uma publicação, referiu-se à jornalista trans India Willoughby como homem, o que resultou em queixa formal de transfobia e difamação apresentada pela própria comunicadora.

Esse embate também repercutiu em sua produção literária. Sob o pseudônimo Robert Galbraith, Rowling publica desde 2013 a série de thrillers policiais protagonizados por Cormoran Strike. Em 2022, lançou ‘Coração de Tinta Negra’, romance em que uma artista é atacada online após manifestações consideradas racistas, capacitistas e transfóbicas. Muitos críticos viram a obra como um reflexo direto das críticas que a própria autora vinha recebendo.

As polêmicas também afetaram suas relações dentro do próprio universo de ‘Harry Potter’. Emma Watson, intérprete de Hermione Granger, declarou recentemente que prefere manter relações saudáveis mesmo com pessoas de opiniões diferentes. Rowling respondeu de forma dura em carta aberta, publicada no X (antigo Twitter), afirmando que Watson ignorava a “realidade da vida” por nunca ter experimentado a pobreza ou a vulnerabilidade de depender de abrigos ou do sistema público de saúde.

Esse argumento torna-se ainda mais complexo quando se observa a própria trajetória da escritora. Antes do sucesso, Rowling viveu sob auxílio do governo britânico, passou por abrigos e sofreu violência doméstica — experiências retratadas no telefilme Mágica Além das Palavras (2011). A pergunta inevitável é: como alguém que enfrentou tanta dor pode desconsiderar a dor alheia, sobretudo a das pessoas trans, alvo recorrente de suas falas?

Site da autora

No campo filosófico, Judith Butler lembra que o discurso de ódio é performativo: não apenas descreve, mas produz realidades opressoras. Ao negar identidades trans, Rowling não apenas expressa uma opinião, mas participa de uma prática linguística que busca excluir e silenciar. Esse mecanismo ecoa conceitos da Escola de Frankfurt sobre a rigidez das elites diante do diferente e encontra ressonância em Pierre Bourdieu, que, ao tratar de capital e habitus, explica como a ascensão social pode levar à incorporação de valores da elite, muitas vezes em oposição às próprias origens.

A noção de “amnésia social”, trabalhada por Boaventura de Sousa Santos, ajuda a compreender esse esquecimento de origem: o sucesso passa a ser visto como mérito individual, eclipsando a experiência de sofrimento que um dia a aproximou dos mais vulneráveis. Esse distanciamento talvez explique a dificuldade da autora em reconhecer a dor de comunidades minorizadas, como a população LGBTQIAPN+, particularmente as pessoas trans, alvo frequente de seus questionamentos.

A psicanálise também oferece chaves de leitura. Freud sugere que o ódio antecede o amor, sendo uma reação de defesa do “eu” diante do que lhe é estranho. Nesse sentido, o reconhecimento da existência trans pode representar, para certas subjetividades, uma ameaça simbólica ao lugar social ocupado. Já Lacan aponta que, em tempos de crise do laço social, o ódio emerge como resposta agressiva à diferença. No ambiente digital, esse movimento se intensifica, amplificado pela ilusão de impunidade.

Paradoxalmente, a própria obra de Rowling parece contradizer esse caminho. Harry Potter celebra alianças entre diferentes origens e denuncia os perigos da busca por uma identidade “pura”, como a de Voldemort. O protagonista, marcado pela dor da exclusão, escolhe lutar pelos marginalizados, enquanto o antagonista rejeita suas raízes mestiças em nome de um ideal narcísico. Ao se afastar das lições de sua literatura, a autora corre o risco de se confundir com a sombra que ela mesma criou.

Ao adotar discursos que negam a diversidade, Rowling parece ignorar as lições de sua própria obra. O risco é que sua imagem pública acabe por se confundir com a sombra de Voldemort, aproximando sua trajetória pessoal daquilo que ela mesma denunciou como destrutivo na ficção.

A autora segue como uma das escritoras mais rentáveis da história, movimentando a indústria cultural em escala global. Entretanto, as contradições entre sua obra e seus discursos levantam questões profundas: seria Rowling vítima de um narcisismo alimentado pelo pedestal em que foi colocada? Ou sempre esteve em sua essência a mesma rigidez que agora se revela sem filtros?

Seja qual for a resposta, sua trajetória atual nos obriga a refletir sobre o poder das palavras, o impacto social do discurso e a responsabilidade de quem ocupa um lugar de influência. Afinal, como mostram seus próprios livros, não basta criar mundos de fantasia: é preciso escolher, no mundo real, de que lado da história se deseja estar.

Foto de capa: Esquerda – Reprodução O Globo | Direita – Reddit

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