Reprodução Vogue
Entre as páginas da edição de agosto de 2025 da revista Vogue, uma imagem chamou a atenção: uma mulher de pele lisa, traços simétricos e olhar ensaiado, que, à primeira vista, parecia uma modelo comum. No entanto, milhares de leitores logo perceberam que ela não existia. Era uma “modelo” gerada por inteligência artificial, criada por uma agência especializada em avatares digitais e contratada pela Guess para uma campanha publicitária.
A entrada da Inteligência Artificial (IA) nas indústrias criativas não é uma novidade isolada, mas uma tendência que se consolida rapidamente. Em agosto de 2025, enquanto a campanha da Guess estampava a Vogue, o 53º Festival de Cinema de Gramado incluiu pela primeira vez em sua programação uma mostra de filmes produzidos com inteligência artificial. Além disso, o Rio Art Innovation Fair & Festival (RAIFF), um evento dedicado exclusivamente a filmes com IA, ocorrerá em 15 de setembro de 2025.
Essas iniciativas escancaram perguntas básicas: quem é o autor quando a imagem, o quadro ou o plano de cinema foi criado por um algoritmo? A tecnologia substitui profissionais criativos ou amplia possibilidades? E, enquanto o novo surge, como proteger direitos e evitar exploração? O debate não é só teórico. Em tribunais e em editoriais de revistas, em salas de curadoria e em estúdios de publicidade, as respostas começam a se desenhar, e mostram contradições.

A revolução artificial da moda: Vogue, Guess e o futuro dos modelos
O primeiro foco do furor foi a peça publicitária da marca Guess veiculada nas páginas da Vogue. As fotos, assinadas pela agência Seraphinne Vallora, sediada em Londres e especializada em imagens geradas por IA, tornaram-se virais e geraram críticas em redes sociais e na imprensa.
As cofundadoras da Seraphinne Vallora, Valentina Gonzalez e Andreea Petrescu, ambas de 25 anos, relataram à Buzzfeed, que começaram a criar modelos de IA porque estavam tentando criar uma marca de joalheria e não tinham dinheiro para contratar modelos verdadeiras, “Como somos designers e arquitetas, decidimos usar as nossas competências para tentar criar os nossos próprios modelos. As outras pessoas viram isso, foi um sucesso e perguntaram se poderíamos fazer o mesmo para elas.” Foi assim que começou o negócio.
Petrescu explicou que sua experiência em arquitetura, especialmente na criação de composições e histórias que “vendem o projeto” (como em Foster + Partners), foi fundamental para o desenvolvimento de imagens cativantes com IA. Ela vê a IA como uma ferramenta, análoga a AutoCAD ou Photoshop, que acelera processos e permite a criação de atmosferas em instantes, mas insiste que a criatividade humana permanece na base de tudo, com humanos por trás das telas, lidando com códigos, prompting e concebendo o resultado final.
No entanto, a campanha levantou uma onda de críticas. A modelo plus-size Felicity Hayward, com mais de uma década na indústria, declarou à BBC que o uso de modelos de IA é “preguiçoso e barato” e que “poderia minar anos de trabalho em direção a mais diversidade na indústria”, alertando que a prática “afetará desproporcionalmente modelos plus-size”.
As fundadoras da Seraphinne Vallora negam que reforcem padrões de beleza estreitos, “Nós não criamos looks inatingíveis, a modelo de IA para a Guess parece bastante realista”.

Contudo, Gonzalez admitiu que o Instagram da empresa mostra uma falta de diversidade, explicando que tentativas de postar imagens de IA de mulheres com diferentes tons de pele não obtiveram engajamento, e que, no final do dia, elas são uma empresa buscando clientes e precisam postar o que gera “tração ou curtidas”. “Não estamos a criar um novo padrão. O padrão sempre existiu. Estamos praticamente em linha com o padrão estabelecido no resto da revista. Se eu olhar para uma revista, vou ser bombardeada com 10 supermodelos diferentes. O facto de uma delas ser IA não muda nada.”.
Defensores da saúde mental também expressaram preocupação. Vanessa Longley, CEO da instituição de caridade Beat (transtornos alimentares), considerou o anúncio “preocupante”, afirmando à BBC que “se as pessoas são expostas a imagens de corpos irrealistas, isso pode afetar seus pensamentos sobre seu próprio corpo, e uma imagem corporal pobre aumenta o risco de desenvolver um transtorno alimentar”. O legislador australiano David Shoebridge também tuitou que “esses corpos digitalmente ‘perfeitos’ não existem, mas o dano à saúde mental de jovens será real”.
A falta de rotulagem transparente para conteúdo gerado por IA também é uma preocupação, apesar de a Guess ter incluído um pequeno aviso legal (“Produced by Seraphinne Vallora on AI”), Sinead Bovell, ex-modelo e empreendedora de tecnologia, disse à
BBC que a falta de rotulagem clara é “excepcionalmente problemática” porque “a IA já está influenciando os padrões de beleza”.
Sara Ziff, fundadora da Model Alliance, viu a campanha da Guess como “menos sobre inovação e mais sobre desespero e necessidade de cortar custos”, defendendo “proteções significativas para os trabalhadores” na indústria.
A Seraphinne Vallora, por sua vez, nega que esteja substituindo modelos, “Estamos oferecendo às empresas outra escolha em como comercializar um produto”. No entanto, o site da empresa promove a eficiência de custos ao “eliminar a necessidade de configurações caras, contratação de modelos, maquiadores, aluguel de locais, cenários, fotógrafos, despesas de viagem”, o que, para os críticos, implica diretamente no corte de muitos empregos criativos.

Gramado: entre o Kikito e o algoritmo, a IA desafia a tradição do cinema
Na sexta arte, um desenvolvimento significativo veio do Sul: o 53º Festival de Cinema de Gramado, que ocorreu entre os dias 13 e 23 de agosto de 2025, integrou uma mostra e uma premiação para filmes que usaram inteligência artificial como ferramenta principal. Quatro obras foram selecionadas entre dezenas inscritas: “Frio” dirigido por Mr.Press, “Inheritance beneath the wheel” de Gabriel Panazio, “As marcas nas paredes” dirigido por Marcio Toson, e o vencedor da categoria, “Antes do Beijo”, de Leandro Corinto foram exibidas online no site do festival, dia 21 de agosto, e em sessão presencial em 22 de agosto, no Teatro Elisabeth Rosenfeld.
Diferentemente das mostras regulares do festival, a categoria de filmes gerados por IA não concedeu os tradicionais Kikitos, os troféus icônicos do Festival de Gramado. Em vez disso, a melhor produção foi decidida por votação popular no site do evento, e o ganhador recebeu uma verba de 20 mil reais a ser utilizada em uma empresa de pós-produção.
A iniciativa foi tomada como um gesto institucional de acolhimento à experimentação tecnológica, mas suscitou críticas públicas sobre a legitimidade artística e a eventual desvalorização do trabalho artesanal do audiovisual. Usuários das redes sociais do festival expressaram indignação com comentários como: “Inacreditável o desrespeito com o mercado criativo e com os realizadores audiovisuais” e “Apoiar a substituição do trabalho artístico humano feito com tanto suor e perrengue, por IA? Sim”. Até mesmo Caio Blat, um dos curadores de longas para o festival, manifestou surpresa com a novidade, declarando à coluna GENTE da Veja: “Não sabia. Que loucura”.

A ressalva técnica é importante: poucos filmes são “100% automáticos”. Na maioria dos projetos apresentados em festivais e mostras, há um roteiro, direção, curadoria de prompts e edição humana — razão pela qual produtores e curadores insistem que a IA funciona como ferramenta, não como criador independente. Ainda assim, a falta de clareza do grau de automação e a ausência de padrões de rotulação (quem informa, e como, o quanto foi gerado por IA?) geram tensão.
A decisão de Gramado de conceder uma verba como prêmio, em vez do troféu tradicional, revela também a cautela institucional diante de um campo em formação. É válido notar que o Festival de Gramado já havia abordado o tema da IA no cinema em edições anteriores, como em 2018, quando o Gramado Film Market discutiu a aplicação da inteligência artificial na busca por maior rentabilidade das produções e o uso de códigos de rastreabilidade, indicando que a discussão sobre IA não é nova, mas a exibição e premiação de obras geradas por IA em 2025 representa uma escalada na integração da tecnologia.

Festivais que nascem para a IA
Enquanto Gramado inseriu a IA numa mostra já consolidada, no Rio de Janeiro surgiu um festival voltado exclusivamente a filmes produzidos com IA, o Rio Art Innovation Fair & Festival (RAIFF) anunciou categorias (curta, comercial, filmes para redes) e programação para 15 de setembro de 2025, com inscrições abertas até 28 de agosto de 2025.
O aparecimento de eventos especializados indica o que os organizadores chamam de “ecossistema de teste”: um espaço para discutir estética, ética e mercado, aproximando marcas, produtoras e criadores que já adotaram ferramentas generativas.
Essa iniciativa, no entanto, gerou um debate entre os profissionais do setor. Embora a organização do festival, com o apoio de empresas como Google e produtoras como Costa Brava e Tess AI, promova o evento como uma plataforma para explorar o potencial criativo da tecnologia, alguns críticos veem a exclusividade do RAIFF como um risco. A visão é que, ao segregar as produções de IA em um nicho, o festival poderia limitar a reflexão sobre a integração da IA nas principais competições e regras do setor audiovisual.
A crítica, embora não atribuída a um nome específico em reportagens sobre o evento, ecoa uma preocupação comum no mercado: a de que a IA seja tratada como um campo à parte, em vez de uma ferramenta que, assim como a computação gráfica ou a fotografia digital, deve se integrar organicamente à produção artística tradicional.
O RAIFF busca não apenas premiar os vencedores (com prêmios que incluem licenças de software, visitas a escritórios de empresas de tecnologia e créditos para uso de IA), mas também educar o público e os profissionais sobre a tecnologia por meio de workshops. Essa abordagem mista, combinando competição e capacitação, visa legitimar a IA como uma ferramenta criativa, ao mesmo tempo que tenta responder à necessidade de um espaço dedicado para essa nova linguagem, reconhecendo as diferenças em relação ao cinema tradicional.

Quando a coleção do MoMA encontra a Inteligência Artificial
No campo das artes visuais, a interseção entre tecnologia e curadoria ganhou destaque com o projeto Unsupervised de Refik Anadol, uma instalação de media art apresentada no The Museum of Modern Art (MoMA) em Nova York. A obra esteve em exibição de novembro de 2022 a outubro de 2023, marcando um marco na exploração da Inteligência Artificial em um dos museus mais influentes do mundo.
O trabalho de Anadol propõe uma pergunta estética e provocadora: “o que uma máquina sonharia depois de ver a coleção do MoMA?”.
Para responder, ele treinou um modelo de IA com o acervo digital completo do museu, interpretando mais de 200 anos de história da arte. O resultado foi uma tela dinâmica de 12 metros de largura que gerava visualizações contínuas, etéreas e em constante mutação, simulando um fluxo de “consciência” da máquina.
A relevância deste projeto se estende além da experiência visual, entrando em discussões cruciais sobre o uso ético da IA na criação. A distinção entre o treinamento com o acervo do MoMA e o uso de bases massivas e não licenciadas da internet é fundamental. No caso de Unsupervised, o museu não apenas autorizou o uso de sua coleção, mas participou ativamente do processo, transformando a obra em uma verdadeira parceria entre curadoria e media art.
Essa colaboração pioneira modela uma prática de consentimento e reconhecimento de boas práticas que, infelizmente, ainda não é comum. Diferentemente dos modelos que operam com imagens protegidas e sem autorização, este projeto serviu para reforçar o debate sobre autoria. A recepção da obra levantou questões complexas: o crédito pertence ao artista? Aos engenheiros de software? À instituição que cedeu o acervo? Ou ao algoritmo que gerou as imagens?
Essas perguntas destacam a necessidade de um novo arcabouço para o campo das artes, onde a colaboração entre humanos e máquinas não apenas cria novas formas de expressão, mas também exige uma redefinição de quem (ou o quê) detém os direitos e a responsabilidade criativa.
O que diz o direito: autores, registros e litígios emblemáticos
Em meio a tanta inovação, a área jurídica tenta acompanhar com documentos, audiências e processos.
No Brasil, o Projeto de Lei 2.338/2023, aprovado pelo Senado em 10 de dezembro de 2024 e encaminhado à Câmara dos Deputados, busca regulamentar a IA, com destaque para a proteção dos direitos autorais. O texto prevê que grandes empresas de tecnologia deverão informar quais conteúdos protegidos por direitos autorais foram utilizados no treinamento de sistemas de IA, e autores terão a prerrogativa de vetar o uso de suas obras.
Além disso, o projeto busca criar um ambiente experimental para que empresas negociem diretamente com autores o valor a ser pago pelo uso de suas criações, considerando o poder econômico das empresas, a frequência e quantidade de uso das obras, e possíveis impactos concorrenciais entre os conteúdos gerados por IA e as criações originais.
O Secretário de Direitos Autorais e Intelectuais do Ministério da Cultura (MinC), Marcos Souza, destacou a relevância do texto para a valorização dos autores, afirmando que a IA é “a questão contemporânea mais relevante no campo do direito autoral” e que a aprovação do PL é um passo para garantir “remuneração justa”. A cantora Marisa Monte também expressou apoio ao projeto em carta aberta ao Congresso Nacional, defendendo uma regulamentação justa para garantir que a união entre criatividade e tecnologia seja um instrumento de progresso culturalmente sustentável para o Brasil.
Ao mesmo tempo, dois tipos de disputa ocupam os tribunais: (1) a questão da autoria e registro das obras que incluem material gerado por IA, (2) a legalidade do uso de obras protegidas, fotos, filmes e textos, para treinar modelos sem licenciamento.

O caso Getty Images v. Stability AI tornou-se símbolo dessa segunda frente: a Getty Images acusou a Stability AI de treinar modelos com milhões de fotos protegidas sem autorização, levando a audiências importantes no Reino Unido.
Este litígio é emblemático porque questiona a base sobre a qual muitos modelos de IA generativa foram construídos, ou seja, o uso massivo de dados sem consentimento ou remuneração aos criadores originais. As decisões judiciais neste e em outros casos semelhantes têm o potencial de redefinir as práticas de licenciamento e as responsabilidades das empresas que oferecem modelos generativos, impactando diretamente o modelo de negócios e a legalidade da criação de IA nos próximos anos.
Frente à tantas polêmicas, por que apostam na IA?
Apesar dos desafios, os defensores da adoção ponderada da IA enumeram benefícios concretos que justificam seu avanço na indústria criativa. A IA pode democratizar a produção, permitindo que criadores com menos recursos prototipem ideias e visualizem projetos que antes exigiriam grandes orçamentos e equipes.
Em publicidade, avatares digitais oferecem escalabilidade e controle de marca, enquanto no audiovisual, ferramentas generativas permitem testar visualidades antes de grandes investimentos. Em uma indústria marcada por altos custos de produção, essas eficiências têm apelo lógico.
Além disso, a IA pode preservar e reinterpretar acervos culturais, como fez o MoMA com o projeto Unsupervised de Refik Anadol, gerando novas linguagens estéticas e formas de interação com a arte. A tecnologia também pode acelerar workflows, otimizar recursos operacionais e permitir decisões mais orientadas por dados, aumentando a produtividade e a inovação em diversos setores.
Segundo a McKinsey & Company, empresa global de consultoria estratégica, a IA generativa tem potencial para movimentar entre US$ 2,6 trilhões e US$ 4,4 trilhões na economia global anualmente, com 75% desse valor gerado em marketing e vendas, o que demonstra o vasto impacto econômico positivo que a tecnologia pode ter.
O Fórum Econômico Mundial prevê que, embora cerca de 9 milhões de empregos possam ser eliminados até 2030 devido a tecnologias emergentes, 11 milhões de novas vagas podem ser criadas, incluindo profissões como engenheiros de personalidade de IA, gerentes de ética em IA e curadores de dados para IA, destacando a necessidade de habilidades que complementam a IA e a capacidade de tomar “decisões criativas baseadas em gosto e julgamento humano”.
Caminhos possíveis: regulação, protocolos e práticas
O debate sobre a IA generativa nas indústrias criativas não é apenas sobre problemas, mas também sobre as soluções que estão sendo construídas. A busca por um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos e do trabalho humano aponta para três caminhos interligados que se complementam:
- Regulação Proporcional e Transparente: Leis e políticas públicas que exijam transparência sobre como a IA é treinada e quais obras são utilizadas. Iniciativas como o Projeto de Lei 2.338/2023 no Brasil e o “AI Act” na União Europeia demonstram a urgência de um marco legal que garanta aos autores o direito de veto e a remuneração justa.
- Modelos de Licenciamento Justo: O desenvolvimento de acordos entre grandes empresas de tecnologia e detentores de direitos autorais para o uso ético e remunerado de acervos. O caso Getty Images v. Stability AI e a busca por um ambiente de negociação direta, como previsto no PL brasileiro, são cruciais para a sustentabilidade da indústria criativa.
- Normas e Autorregulação do Setor: A criação de protocolos claros por parte de agências, festivais e museus para rotular conteúdo gerado por IA, creditar os criadores humanos e promover boas práticas. Essas diretrizes complementam a legislação, mitigando riscos de exploração e reforçando a ética na produção.
A presença crescente de imagens, filmes e obras geradas por IA desloca debates que eram técnicos para o centro da cultura visual. A tecnologia já provoca ganhos reais de experimentação e eficiência, mas também expõe lacunas de direitos, de trabalho e de linguagem que precisam ser endereçadas com clareza.
A escolha editorial de grandes marcas, o gesto curatorial de museus e as decisões judiciais em casos emblemáticos farão, juntos, o mapa de permissões e proibições que vai moldar a indústria criativa dos próximos anos.
